domingo, 5 de abril de 2020

Coronavírus - a estratégia depende do valor que se dá a vida humana



O artigo a seguir traça uma breve discussão na abordagem que torna distinta a preocupação dos epidemiologistas e do exercito de profissionais de saúde em relação àqueles que estão preocupados com a saúde de um organismo intangível chamado economia. Uma das grandes ironias dessa discussão, é que a longevidade é o prêmio do sucesso de uma nação com economia bem sucedida. No entanto quando esse valor é alcançado uma parcela dos promotores político-econômicos expressam de forma clara que esse documento de êxito não tem valor se o trade off for a própria manutenção do processo econômico. Ou seja, o próprio resultado de um teórico sucesso econômico, mais tempo de vida, é algo dispensável em um momento como o da pandemia atual. Provavelmente porque a vida em si não é seu objeto. Seu objeto são números. A própria longevidade é um número do sucesso, um valor estatístico. Embora precise de vidas reais que a documente, como dado estatístico, essas vidas não tem nome, portanto são dispensáveis. Esses "sem nome" talvez não soubessem disso enquanto participavam ativamente para manutenção desse maquinário com esse funcionamento. Será que fariam igual se tivessem tido chance de entender essas implicações?

A verdadeira razão pela qual epidemiologistas e economistas continuam discutindo

           
Por Noah Feldman, 03/04/20
Não são apenas as fábricas que não podem se reequipar da noite para o dia para enfrentar a pandemia do COVID-19. Nossos cérebros também não podem. A maneira como pensamos e as coisas que pensamos seguem padrões capazes de evoluir e mudar - mas não tão rápido assim.
Você pode ver esse fenômeno ao seu redor agora: o que quer que tenhamos sido antes, agora estamos os usando como nossas lentes para pensar no novo coronavírus. E os especialistas no assunto, as pessoas de que mais precisamos em uma crise, também têm maior probabilidade de continuar pensando como vinham pensando, porque seu pensamento é tão fortemente moldado (ou deformado) pelo treinamento profissional e por pesados valores coletivos.
Eu poderia lhe dar muitos exemplos. Se você costuma pensar na diversidade no ambiente de trabalho, provavelmente estará focado nos impactos díspares do vírus nos trabalhadores com base em sexo, etnia  e classe social. Se você está focado em reformar o modelo prisional, provavelmente estará entre aqueles que alertam sobre o impacto da pandemia na população carcerária.
Mas talvez os dois exemplos mais importantes de especialistas que seguem seu treinamento e crenças prévias sejam as duas disciplinas cujo conhecimento é dos mais centrais para a crise atual: os epidemiologistas e os economistas.

Suas abordagens intelectuais têm muito em comum. No entanto, a diferença entre suas abordagens já está moldando as respostas do seu governo à pandemia.
E o que começou como uma diferença de ênfase tem o potencial de se tornar um abismo à medida que a catástrofe da saúde pública continua e a crise econômica subsequente se aprofunda.
Para simplificar demais, pense nos epidemiologistas como especialistas que passaram toda a sua carreira se preparando para entender e suprimir doenças que se espalham rapidamente. Sua tendência intelectual distinta é construir modelos de transmissão e depois desenvolver intervenções no mundo real para alterar o resultado esperado. Seu principal valor é preservar a saúde pública.
"Achatar a curva" é um exemplo perfeito da visão epidemiológica do mundo. Os primeiros modelos de transmissão mostraram uma curva acentuada de infecção. O distanciamento social é uma intervenção que visa alongar essa curva para que os hospitais não sejam sobrecarregados e as mortes reduzidas.
Agora pense nos economistas, ou para ser mais preciso, os macroeconomistas. Eles também têm modelos - os deles devem prever como a economia funciona. E eles também estão focados em intervenções com potencial para melhorar os resultados.
Mas é aí que a semelhança termina. Ao contrário dos epidemiologistas, que identificam um inimigo biológico e tentam derrotá-lo sem pensar muito nos custos, os economistas vivem de trade-offs(*). Para os economistas, esse é um artigo de fé onde não existe um valor absoluto - nem mesmo o valor da vida humana.
(*) O são TRADE OFFs: O trade off é o nome que se dá a uma decisão que consiste na escolha de uma opção em detrimento de outra. Para se tratar de um trade off o indivíduo deve, necessariamente, deixar de lado alguma opção em sua escolha. Por exemplo, as pessoas enfrentam o trade off entre consumo e lazer. Ou seja, para se obter mais consumo é necessário trabalhar mais, e assim abdicar de tempo de lazer.
Em vez disso, a maioria dos economistas adota a dura realidade de que ajudar uma pessoa geralmente deixa outra menos abastada. Quando se trata de tomar medidas políticas relacionadas à saúde, os economistas gostam de apontar que estamos implicitamente ou explicitamente atribuindo um valor econômico mensurável à vida humana. Se reduzíssemos o limite de velocidade para 10 quilômetros por hora, quase não haveria mortes no trânsito, eles gostam de nos lembrar. O limite de velocidade de 80 quilômetros por hora impõe um preço à vida humana, gostemos ou não.
Além do mais, os macroeconomistas costumam passar suas carreiras se preparando para entender e responder a crises na economia. Eles estão profundamente sintonizados com os graves perigos associados a uma economia paralisada. Quando veem governos tomando medidas que terão exatamente esse efeito (paralisação), são pré-condicionados a responder com horror e aconselhar um curso de ação diferente.
O resultado dessas diferentes visões de mundo é que, no geral, os epidemiologistas estão insistindo em que devemos tomar todas as medidas necessárias para controlar a disseminação do COVID-19. Enquanto isso, muitos economistas estão dizendo que devemos encontrar uma maneira de reabrir a economia e que devemos ponderar explicitamente a troca entre a saúde relacionada a vírus e o bem-estar humano mais amplo, que é em parte um produto de uma economia em funcionamento. (É claro que nem todos os epidemiologistas e economistas se encaixam perfeitamente nessas dois polos; estou oferecendo um dispositivo heurístico para entender as diferentes abordagens, não um estudo sociológico.)
Para os economistas, existe um artigo de fé que não possui um valor absoluto - nem mesmo o valor da vida humana.


O abismo entre as visões de mundo é grande - e está crescendo.
Quando os epidemiologistas dizem que não há compromisso entre saúde e economia, porque se as pessoas ficam doentes e morrem, a economia fica pior, muitos economistas apenas balançam a cabeça. "Sempre há uma troca", você pode ouvi-los pensando. As consequências são mensuráveis. A morte de pessoas é lamentável, mas ainda é um custo que poderia ser comparado aos custos de paralisação.
Enquanto isso, quando os economistas falam sobre o trade-off, muitos epidemiologistas (e outros) acham moralmente repreensível quando as pessoas estão morrendo.
O conflito entre essas duas abordagens virá à tona se e quando a taxa de novas infecções e mortes começar a diminuir como resultado do isolamento social. É quando os economistas dizem que é hora de começar a devolver as pessoas ao trabalho. E é quando os epidemiologistas dizem que estamos cortejando o desastre de um surto recorrente.
Enquanto isso, o melhor que podemos fazer é termos consciência de quais são nossas próprias tendências intelectuais.
Noah Feldman é colunista da Bloomberg Opinion e professor de direito na Universidade de Harvard.

Definição de TRADE OFF AQUI

Créditos das gravuras 
No cabeçalho AQUI
Corpo do texto AQUI


Nenhum comentário:

Postar um comentário