Gorduras e imunidade
Quando se fala em saúde cardiovascular sempre vem a tona a questão das gorduras - sejam elas alimentares ou da composição corporal. Muitas vezes as pessoas ainda ficam surpresas quando é proposto uma definição mais exata do papel de personagens muito citados como a gordura saturada, ácidos grados ômega-6 (n-6), ômega-3 (n-3), triglicerídeos etc., na compreensão de processos imunológicos e inflamatórios. As vezes parece que nem sabemos o que está sendo informado quando vemos um exame ordinário como o perfil lipídico do sangue.
“A mudança radical na dieta humana, com predomínio franco dos ácidos graxos poliinsaturados n-6 (ômega-6) relativamente à dieta de nosso antepassados, será muito provavelmente, uma das razões para o aumento da doença cardiovascular verificado nos países ocidentais.” Essa é uma das conclusões de um artigo sobre o tema. Só que esse artigo é de 2002!
Vou falar sobre essa interessante publicação que venho guardando há muitos anos e que agora parece fazer mais sentido para as pessoas bem informadas. Seu título é: “Lipídios e Imunidade”. É bastante técnico e repleto de nomes complicados, pois o autor está preocupado em situar o leitor no enredo da trama biológica com a maior precisão possível. Ainda assim, é sem dúvida uma pequena e fundamental referência para se entender a relação dos lipídios com o processo inflamatório, ofertando ainda a possibilidade de um olhar mais perspicaz para os tradicionais exames de colesterol e triglicerídeos.
Sobre a inflamação
A personagem master responsável pelos aspectos cardinais da inflamação: vermelhidão (rubor), inchaço (edema), calor e dor é a PGE2 - a prostaglandina E2. É um membro de um grupo maior chamado de Prostanóides. Todos os prostanóides são derivados da ação de uma enzima sobre os ácidos graxos, essas enzimas são as ciclooxigenases, ou mais simplesmente as COX. Existem duas formas COXs: a COX-1 e COX-2 (talvez uma terceira, no sistema nervoso central a COX-3).
Quando tomamos alguns medicamentos bem populares eles atuam nesse sistema de enzimas. Os antiinflamatórios mais comuns atuam bloqueando ambas as enzimas, como o diclofenaco e o ibuprofeno. Um grupo mais recente dos antiinflamatórios atuaria somente na COX-2, mas como se verificou riscos graves, dois deles já foram retirados do mercado: o refecoxibe (Vioxx) e o valdecoxibe (Bextra) - restando basicamente o celecoxibe (Celebra).
As prostaglandinas fazem parte dos eicosanóides.
Um outro grupo de eicosanoides são os leucotrienos, mas a enzima responsável é outra: a lipooxigenase (LO).
O substrato de ação de ambas as enzimas COX e LO são os ácidos graxos, do grupo dos ácidos graxos poliinsaturados. O mais importante é ácido araquidônico, sendo o mais prevalente o de origem alimentar: o ácido linoleico, de 18 carbonos e duas ligações duplas, muito conhecido como Ômega-6 (n-6).
As células responsáveis pela resposta inflamatória são as células brancas: os leucócitos, e uma variedade de estímulos extra-celulares as induz a produzir prostaglandinas. Isso vai incluir outros personagens mais ou menos conhecidos como:
1) O hormônio feminino estradiol;
2) Um fator de controle da pressão: a angiotensina II, que produz constrição de vasos e retenção de sódio, portanto sendo um fator de hipertensão;
3) Um fator mediador da inflamação que favorece a permeabilidade e dilatação local de vasos, a bradicinina;
4) Outros fatores indutores de inflamação, e
5) Os próprios eicosanóides (ou seja a produção de prostaglandinas induz a mais produção).
Perfil lipídico e inflamação crônica
A inflamação crônica é um fator importante para a doença cardiovascular. E a inflamação dá origem a uma mudança no perfil dos lipídios do sangue. Assim quando se avalia aqueles exames de lipídios em exames de rotina, o que se persegue saber é: o status pró inflamatório está ativado?
Uma das alterações mais constantes que mostra inflamação crônica é o aumento de uma porção de lipo-proteínas que aparecem junto do colesterol: a VLDL. (normalmente aparece quando é solicitado especificamente, colesterol e frações ou perfil lipídio completo, geralmente o valor de referência é menor que 30).
Uma outra questão importante diz respeito ã fração HDL. Em modelos animais se verifica que a redução do colesterol HDL é uma resposta a quadros inflamatórios. Em seres humanos o C-HDL está reduzido nos portadores de doenças crônicas.
Por outro lado a redução do HDL pode ser responsável por mais oxidação da fração LDL do colesterol, já que as partículas HDL contém enzimas que protegem as LDL daquele processo.
A LDL oxidada é reconhecido fator de doença cardio-vascular.
Os triglicerídeos também costumam estar elevados em processos inflamatórios.
Interferência alimentar
Esses processos fisiológicos devem ter sido concebidos para aprimorar respostas de defesa do hospedeiro, e mostram a estreita relação dos lipídios com o processo inflamatório e naturalmente com os lipídios dietéticos.
Um dos modelos de gordura antiinflamatória é o óleo de peixe. Tem alto teor de ácidos graxos de 20 e 22 carbonos. Sob ação das enzima COX e LO, o resultado é a formação de produtos com fraca ação inflamatória.
Outro aspecto citado pelo autor é o ácido graxo do tipo ômega-3 (18 carbonos) - o ácido alfa linolênico, precursor dos ácidos graxos citados antes, o que leva a formação de uma cascata bioquímica que resulta em derivados com menor potencial inflamatório.
Isso traz a vantagem de aumentar a concentração de substâncias que estão presentes nas membranas de células brancas, que modulam todo o processo da inflamação.
Estudos em antropologia nutricional tem mostrado que a alimentação humana tem reduzido os ácidos graxos de ômega-3, onde a tradicional proporção de 2:1 entre n-6 e n-3 ficou altamente desproporcional em 20-30:1. Vegetais cultivados e animais alimentados com cereais são pobres em ômega-3. Os ácidos n-6 são percursos diretos do ácido araquidônico, e isso certamente está influenciando para um aumento em doenças cardiovasculares e auto-imunes.
Assim, quando recebemos um resultado de laboratório como os lipídios do sangue, e compreendemos seu significado, não parece mais sensato se buscar simplesmente, por exemplo se reduzir uma taxa de colesterol com remédios. Devemos, em realidade, interpretar o processo subjacente e introduzir condutas pertinentes a esse significado: reduzir a inflamação em andamento! Limitar o consumo de gorduras de má qualidade, como aquelas ricas em ômega-6 (óleos vegetais em geral, gordura vegetal hidrogenada e margarina), reduzir o estímulo a formação de triglicerídeos (reduzindo o consumo de carboidratos, como vários estudos já documentaram) são alguns exemplos de medidas que podem nos aproximar desse fundamental objetivo para restabelecer a saúde.
Essa, então, é uma súmula do excelente artigo de José Manuel dos Santos Pereira de Moura (Lípidos e imunidade), produzido em 2002. Quem quiser baixar o artigo original esse é o LINK.
Referência: Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Vol. 10, N.1, 2003
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito grato! O blog estará continuadamente se esforçando para manter qualificação e consistência em seus artigos!
ResponderExcluirDoutor, eu gostaria de saber como fica exatamente o perfil lipidico da carne de um animal alimentado com ração? Existe literatura sobre isso? Obrigado e abraços
ResponderExcluirBaita pergunta.
ExcluirPrezado Vinicius! Grato pelo contato. É um bom tema para pesquisa. Achei por exemplo esse artigo para a questão de frangos alimentados por ração: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8410/000575545.pdf?sequence=1
ResponderExcluirQue tal a capa da última edição da revista americana Time, Doutor. Acho que enfim a gordura vai começar a ser desmistificada.
ResponderExcluirJá não era sem tempo. Fiz uma referencia ao tema na ultima postagem!
ResponderExcluirAmei. Parabéns pela síntese.
ResponderExcluirGrato.
ResponderExcluirSensacional. Mais um local de pesquisa.
ResponderExcluirJosé, tenho um blog de emagrecimento saudável, www.emagrecerefafil.com.br
Gostaria de saber se o senhor aceitaria me ceder uma entrevista online para abordarmos este e outros temas para as pessoas entenderem mais de tudo isso...
Aguardo sua resposta e obrigado pela dedicação em prover conteúdo de valor para a sociedade!!
Cristian, muito grato pelo convite. Certamente podemos combinar. E-mail de contato pode ser o do blog ou josecarlospeixoto@live.com.
ExcluirPrezado Dr José Carlos Brasil Peixoto,
ResponderExcluirTenho que agradecer pela sua iniciativa com este blog. Busquei-o por indicação do Dr Souto e estou muito feliz com o conteúdo. Precisamos levantar estas bandeiras contra a desinformação!
Vamos em frente, tentando trazer senso crítico às cabeças de nossos pacientes e colegas.
Parabéns!
Prezado Adolfo, muito grato pela sua mensagem. É revigorante perceber que nos últimos anos há um crescente abertura para novas abordagens entre os profissionais de saúde! Grande abraço!
ResponderExcluirOlá Dr, eu cortei os óleos de sementes e reduzi o consumo de carbs, mas eventualmente compro um pão de queijo ou uma rosca de pouvilho e me parece que tem óleo de soja. Essas escapadas eventuais são suficientes para causar algum problema?
ResponderExcluirBem, se forem feitas em casa com certeza são produtos mais seguros. Infelizmente, esses comprados em supermercados e padarias costumam ter ingredientes complicados. Sabemos que no dia a dia é difícil termos alimentos caseiros, mas sou um forte entusiasta dessa modalidade de alimentação. Não é tão simples assegurar o quão seguro seja "dar escapadas", mas considero a situação de que quando sabemos o que é melhor para nós, geralmente acabamos "ficando meio chatos" e dessa forma não comeremos aquilo que não nos parece saudável...
ResponderExcluirNossa, bom demais! Adorei, dr. José Peixoto!!!
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