Cientistas não podem mais ignorar os contos antigos sobre inundações
Histórias indígenas do final da última Idade do Gelo podem ser mais do que mitos.
Não foi muito depois de Henry David Inglis chegar à ilha de Jersey, a noroeste da França, que ele ouviu a velha história. Os moradores contaram ansiosamente ao escocês, escritor de viagens do século XIX como, em uma época passada, sua ilha era muito mais substancial e que as pessoas costumavam caminhar até a costa francesa. O único obstáculo para sua jornada era um rio – um facilmente atravessado usando uma ponte curta.
“Tá certo!” Inglis presumivelmente zombaria enquanto olhava para os 22 quilômetros de mar azul cintilante entre Jersey e a costa francesa – porque ele escreveu, em seu livro de 1834 sobre a região, que essa era “uma afirmação ridícula demais para merecer crédito”. Cerca de 150 anos antes, outro escritor, Jean Poingdestre, também não se comoveu com tal história. Ninguém poderia ter caminhado de Jersey para a Normandia, ele tripudiou, “a menos que fosse antes do dilúvio”, referindo-se ao cataclismo do Antigo Testamento.
No entanto, houve uma inundação. Das grandes. Entre cerca de 15.000 e 6.000 anos atrás, inundações maciças causadas pelo derretimento das geleiras elevaram o nível do mar em toda a Europa. E essa inundação é o que acabou transformando Jersey em uma ilha.
Em vez de ser uma afirmação ridícula que não merecese ser examinada, talvez a velha história fosse verdadeira – um mumúrio dos ancestrais que realmente caminharam por terras agora desaparecidas. Um sussurro que ecoou por milênios.
É exatamente isso que o geógrafo Patrick Nunn e a historiadora Margaret Cook, da Universidade de Sunshine Coast, na Austrália, propuseram em um artigo recente.
Em seu trabalho, a dupla descreve lendas coloridas do norte da Europa e da Austrália que retratam águas subindo, penínsulas tornando-se ilhas e litorais recuando durante esse período de deglaciação há milhares de anos. Algumas dessas histórias, dizem os pesquisadores, capturam o aumento histórico do nível do mar que realmente aconteceu – muitas vezes há vários milhares de anos. Para os estudiosos da história oral, isso as tornam em geomitos.
“A primeira vez que li uma história aborígine da Austrália que parecia lembrar o aumento do nível do mar após a última era glacial, pensei: Não, não acho que isso esteja correto ”, diz Nunn. “Mas então eu li outra história que lembrava a mesma coisa.”
Desde então, Nunn reuniu 32 grupos de histórias de comunidades indígenas ao redor da costa da Austrália que parecem se referir a mudanças geológicas ao longo da costa.
Veja a lenda de Garnguur, contada pelo povo Lardil (também conhecido como Kunhanaamendaa) nas Ilhas Wellesley, no norte da Austrália. Descreve uma mulher gaivota, Garnguur, que separou as ilhas do continente arrastando uma jangada gigante, ou walpa, para frente e para trás através de uma península. Em algumas versões da história, isso é uma punição para seu irmão, Crane, que não conseguiu cuidar de seu filho quando solicitado. Nunn e Cook argumentam que a narrativa pode ser tomada como uma memória de como, cerca de 10.000 anos atrás, o derretimento das geleiras fez com que as Ilhas Wellesley fossem isoladas do continente. Curiosamente, há um cume subaquático entre duas das Ilhas Wellesley – talvez uma característica do fundo do mar que provocou a imagem de Garnguur movendo sua jangada na terra, sugerem os pesquisadores em seu artigo.
Separadamente, outros grupos indígenas no sul da Austrália, como os Ngarrindjeri e os Ramindjeri, contam um período em que a Ilha Kangaroo já foi conectada ao continente. Alguns dizem que foi cortado por uma grande tempestade, enquanto outros descrevem uma linha de pedregulhos parcialmente submersos que uma vez permitiram que as pessoas atravessassem a ilha.
Para Jo Brendryen, paleoclimatologista da Universidade de Bergen, na Noruega, que estudou os efeitos do degelo na Europa após o fim da última era glacial, a ideia de que as histórias orais tradicionais preservam relatos reais da elevação do nível do mar é perfeitamente plausível.
Durante a última era glacial, diz ele, o derretimento repentino das camadas de gelo induziu eventos catastróficos conhecidos como pulsos de água derretida, que causaram um aumento repentino e extremo do nível do mar. Ao longo de algumas costas na Europa, o oceano pode ter subido até 10 metros em apenas 200 anos. Em tal ritmo, teria sido perceptível para as pessoas em apenas algumas gerações humanas.
“Essas histórias são anedotas, mas anedotas suficientes geram dados”, explica Brendryen. “Ao coletar sistematicamente esses tipos de memórias ou histórias, acho que você pode aprender alguma coisa.”
Além de capturar eventos históricos, os geomitos oferecem um vislumbre da vida interior daqueles que estiveram lá, diz Tim Burbery, especialista em geomitos da Marshall University em West Virginia, que não participou da pesquisa: “São histórias baseadas em traumas, baseado na catástrofe”.
É por isso, ele sugere, que pode ter feito sentido que gerações sucessivas transmitissem histórias de convulsões geológicas. As sociedades antigas podem ter procurado transmitir seu aviso: Cuidado, essas coisas podem acontecer!
“Eles iriam mitificá-las”, acrescenta Burbery. “Eles usariam a linguagem da lenda e, dentro disso, poderia haver alguns dados reais.”
Hoje, muitas pessoas relatam uma sensação de eco-ansiedade por causa das mudanças climáticas e seus efeitos, incluindo o aumento do nível do mar. Nunn aponta que nossa situação contemporânea difere em alguns aspectos dos predicamentos antigos – há muito mais humanos no planeta e grandes cidades costeiras densamente povoadas, por exemplo. E, diferentemente dos períodos históricos de degelo, somos hoje tanto os agentes quanto as vítimas das rápidas mudanças ambientais. Mas a vulnerabilidade às mudanças climáticas nos permite sentir uma afinidade com nossos antepassados. E as velhas histórias ainda têm coisas para nos ensinar. Como Nunn diz: “O fato de nossos ancestrais terem sobrevivido a esses períodos nos dá esperança de que possamos sobreviver a isso”.
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