segunda-feira, 27 de julho de 2020

Coronavirus - como medicamentos sem comprovação se tornaram diretrizes na América do Sul

 

            Há uma demanda para que se empregue a ivermectina na pandemia do novo coronavírus. Seu uso pode ser para os casos muito graves de UTI, nos não tão graves hospitalizados e nos não suficientemente graves que estão se tratando em casa. Adicionalmente o seu emprego pode ser benéfico para casos leves iniciais, ou se houver contato com suspeito de exame positivo ou mesmo sem exame positivo, mesmo sem quaisquer sintomas. Sua utilização pode ser até mesmo para qualquer pessoa que queira se prevenir, mesmo que não seja pessoa de idade avançada, ou qualquer fator de risco a ser considerado. Ou seja: que se dê ivermectina para toda a população irrestritamente. Finalmente descobrimos um remédio, um único medicamento, que na história da medicina, surge como solução e prevenção definitiva de uma crise sanitária com raros precedentes. Parece um alento divino, uma mágica pura! Só que não...

            A ivermectina surge com discrição nas sombras do escândalo de uma desconhecida e minúscula empresa americana de Big Data, que provavelmente usou dados inconsistentes, infundados ou mesmo inexistentes. Essa empresa levou a promoção de um tratamento (a rigor em situações de pacientes de UTI respiratória) sob alegações exageradas ou enganosas, a partir de informações que não se confirmaram em termos de temporalidade, densidade de casos e realidade técnica dos locais assumidos. A matéria prima seria o conjunto dos valiosos dados dos prontuários dos doentes tratados em hospitais de todos os continentes. Porém insuflados, travestidos e talvez inventados.

A Surgisphere fez uma das mais importantes revistas cientificas médicas mundiais se retratar sobre a imprecisão de um artigo que analisou tratamentos para o coronavírus. Óbvias e escabrosas inconsistências vieram à tona. É um escândalo que mostra as fragilidades de um sistema de investigação cientifica que está transitando do modelo padrão ouro (estudos randomizados duplo cego) para a análise matemática fria por empresas de tecnologia do vale do silício. O uso da Big Data e o tintilar de recursos monetários para dar o devido respaldo de financiamento, uma vez que exige gigantescas redes de informação e o filtro das cautelas éticas (uso de dados individuais demasiado sensíveis), naufragou pela “compreensiva” mas nefasta urgência de encontrar-se soluções para uma enfermidade pandêmica, falta de acurácia dos escrutinadores de temas de pesquisa médica e pela ausência de sensatas posições de gestores de políticas de saúde.

            No artigo a seguir vamos entender um pouco melhor porque chegamos a esse triste e deplorável momento, onde profissionais, possivelmente cheio de boas intenções acabam se tornando cúmplices da ignorância e desrespeito do saber. A ciência deixada de lado. Reputações jogadas no lixo.


Dados não confiáveis: como a incerteza tem ficado cada vez maior sobre a pesquisa de drogas contra a Covid-19 que varreram o mundo

Um vasto banco de dados de uma empresa pouco conhecida chamada Surgisphere influenciou mudanças rápidas nas políticas [de atenção a saúde], à medida que o mundo procura tratamentos para a Covid-19. Mas quando os pesquisadores começaram a examiná-lo mais de perto, eles foram ficando cada vez mais alarmados.


por Melissa Davey – para o THE GUARDIAN

Carlos Chaccour havia acabado de acordar em Barcelona quando abriu o laptop para ler as últimas pesquisas do Covid-19.

Carlos Chaccour

Normalmente, ele começava o dia meditando, mas isso estava se mostrando difícil no meio de uma pandemia global.

Durante a noite, vários colegas enviaram a ele um grande estudo que acabara de ser publicado on-line, que examinava o efeito do antiparasitário ivermectina em pacientes hospitalares da Covid-19 em todo o mundo.

Chaccour é conhecido por seu trabalho com o instituto de pesquisa ISGlobal na Espanha, examinando parasitas e micróbios, explorando como os vetores espalham doenças e o que funciona para tratar as infecções que eles transmitem. Ele está particularmente interessado em drogas que matam mosquitos, especialmente ivermectina. Por isso, ficou intrigado com o estudo, publicado em 14 de abril em uma versão conhecida como "pré-impressão", o que significa que foi disponibilizado on-line antes de ser revisado por pares ou aceito por uma revista médica.

"Vi que os pesquisadores analisaram esse enorme banco de dados ... eles incluíram 169 hospitais na Ásia, Europa, África, América do Norte e América do Sul e 1.900 pacientes Covid-19 atendidos por hospitais nesses países até 1º de março", diz Chaccour. A metodologia do estudo disse que seus dados foram obtidos no Surgisphere. O site da Surgisphere diz que possui um sistema de análise de dados chamado QuartzClinical que monitora a assistência médica global em tempo real através da coleta de dados de 1.200 hospitais internacionais. O material promocional diz que o banco de dados "levou a avanços no tratamento de insuficiência renal, aneurismas, linfedema, doença arterial periférica, câncer de cólon e doença cardiovascular".

O banco de dados parecia incrível.

Mas, quando Chaccour e outros pesquisadores começaram a olhar mais de perto, rapidamente descobriram algumas anomalias. Nas próximas semanas, essas dúvidas só aumentariam. O próprio Surgisphere passou por um exame minucioso, culminando em duas das revistas médicas de maior prestígio do mundo, reconsiderando estudos com base em seus dados, uma reviravolta da Organização Mundial de Saúde na pesquisa de um possível tratamento Covid-19 e uma investigação do Guardian que descobriu preocupantes inconsistências na história do Surgisphere.

“Foi tão estranho”

A primeira surpresa de Chaccour foi que o estudo encontrou 52 pacientes Covid-19 que receberam ivermectina. Na época, a ivermectina não estava sendo amplamente discutida como um potencial tratamento com Covid-19. No entanto, o estudo disse que pacientes em todo o mundo já a estavam recebendo.

O estudo também incluiu dados de três pacientes na África que, em 1° de março, estavam em ventilação mecânica e recebendo ivermectina.

"Mas havia apenas dois pacientes em todo o continente naquela época, e muito menos pessoas usando ventiladores", diz Chaccour.

Chaccour, que trabalhou em toda a África e conhece bem os sistemas de saúde africanos, acredita que muitos hospitais não estão equipados com os sistemas eletrônicos de saúde necessários para fazer parte desse banco de dados.

“E eles deveriam estar conectados a uma coisa automática sofisticada que fornece todos esses dados a uma corporação nos EUA? Foi tão estranho.”

Os dados dos EUA no estudo também levantaram questões. O artigo encontrou mortalidade dos pacientes Covid-19 em ventilação mecânica e no grupo controle de 2%. Por outro lado, um artigo publicado na revista JAMA sobre o maior sistema de saúde do estado de Nova York constatou que quase 25% dos que estavam em ventiladores morreram. Apenas os pacientes mais críticos necessitam de ventilação, portanto, essa alta taxa de mortalidade não foi uma surpresa. A baixa taxa de mortalidade do estudo de pré-impressão o foi.

“Então, esses caras têm um grupo de controle com 10 vezes menos mortes?" Chaccour diz. "Mas foi uma pré-impressão e pré-publicação, e eu disse a mim mesmo: 'bem, isso é apenas outra coisa não revisada, seja o que for, não faz muito sentido'”. Ocupado com seu próprio trabalho, ele tentou esquecer o estudo.

Mas as notícias do estudo se espalharam. Soou muito impressionante.

“Eles falam sobre índices de tendência, esse enorme banco de dados de 169 hospitais, cinco continentes, parece chique, e as pessoas começaram a se apegar a este estudo por esperança”, diz Chaccour. "Os médicos estavam desesperados por algo para tratar o Covid-19."

Em 2 de maio, duas semanas após o estudo aparecer on-line, um médico no Peru escreveu um documento oficial ao governo sobre o uso da ivermectina no tratamento do Covid-19, citando fortemente o estudo pré-impresso do Surgisphere como evidência. O Peru relatou seu primeiro caso de Covid-19 em 6 de março, mas no início de maio estava em estado de emergência, tendo registrado 42.000 casos e cerca de 1.200 mortes. Menos de uma semana após a publicação do documento, o governo peruano incluiu a ivermectina em suas diretrizes terapêuticas nacionais Covid-19. Projetos envolvendo a ivermectina em todo o mundo receberam milhares de dólares em doações.


Chaccour estava preocupado. Ele conhecia bem a ivermectina e ficou chocado com a rapidez com que estava sendo adotado como parte dos protocolos de tratamento sem uma pesquisa rigorosa para suportar esse emprego. Ele acredita que mais estudos devem ser feitos primeiro, como ele escreveu em um editorial no qual foi o principal autor, publicado em 16 de abril. Ele enviou ao pesquisador principal no papel de pré-impressão um e-mail com algumas perguntas e preocupações sobre os dados, que foram encaminhados a um co-autor do artigo, o fundador e executivo-chefe do Surgisphere, Dr. Sapan Desai.

Em vez de responder suas perguntas sobre os dados, diz Chaccour, Desai o elogiou e falou com entusiasmo sobre uma possível colaboração.

"Vou me limitar a dizer que minhas preocupações com o estudo não se reduziram em nada", diz Chaccour.

"Foi de fato uma bagunça "

Então, em maio, a revista médica mais respeitada do mundo, o New England Journal of Medicinepublicou um estudo com dois dos mesmos autores do estudo pré-impresso com ivermectina. O renomado cirurgião vascular da Universidade de Harvard, Dr. Mandeep Mehra, foi o principal autor, Desai, o segundo autor. O estudo também baseou seus resultados no banco de dados Surgisphere QuartzClinical, incluindo dados de pacientes Covid-19 de 169 hospitais em 11 países da Ásia, Europa e América do Norte. Ele descobriu que medicamentos comuns administrados para doenças cardíacas não estavam associados a um maior risco de morte em pacientes do Covid-19.


Chaccour achou que isso poderia explicar suas preocupações com o estudo da ivermectina. “Eu pensei que [talvez o estudo com ivermectina] fosse apenas um projeto paralelo enquanto eles estavam ocupados trabalhando nesse grande estudo do New England Journal of Medicine. Não olhei atentamente para o estudo, porque doenças cardiovasculares não são a minha área.”

Enquanto isso, outro medicamento, um antimalárico chamado hidroxicloroquina, um derivado da cloroquina , estava ganhando força como um potencial tratamento para Covid-19 nos EUA depois que Donald Trump a descreveu como possivelmente “uma das maiores mudanças na história da medicamento", acrescentando, "ela não vai matar ninguém". Logo depois,  um homem norte-americano morreu depois de beber cloroquina encontrada num limpador de aquário porque estava com medo de ficar doente . Na Nigéria também houve relatos de envenenamentos por cloroquina. Os reguladores de medicamentos em todo o mundo instaram as pessoas a não tentarem obter e ingerir tal medicamento, enfatizando que ele não foi comprovado como um tratamento para Covid-19 e teve efeitos colaterais potencialmente tóxicos.

"Foi uma bagunça real", diz Chaccour. “Havia uma grande polarização política sobre a hidroxiclorioquina, a política se confundiu com a prudência. Portanto, há pessoas que defendem a hidroxicloroquina porque gostam de Donald Trump e outras que se opõem a isso porque não gostam de Donald Trump. [Quando] isso deveria ser sobre [base de] dados, não sobre [infundadas] opiniões e absolutamente não sobre [afinidade] política. O mundo ficou louco.

Enquanto isso, a ivermectina continuava ganhando impulso em toda a América Latina. O artigo de pré-impressão sobre a ivermectina havia sido baixado mais de 15.000 vezes, e seu resumo, 90.000 vezes. A Bolívia foi um passo além do Peru, anunciando em 19 de maio que 350 mil doses da droga seriam distribuídas. "A demanda aumentou enormemente, tanto que surge um mercado negro de ivermectina", diz Chaccour. "Então, a ivermectina ameaça se tornar a nova hidroxicloroquina na América Latina." Pesquisadores da América Latina que descobriram que a hidroxicloroquina não era eficaz para o Covid-19 começaram a receber ameaças de morte depois que suas descobertas foram publicadas em uma revista médica dos EUA .

Em 22 de maio, o Lancet publicou um estudo de hidroxicloroquina envolvendo 96.000 pacientes em todo o mundo, que constatou que o medicamento estava associado a um maior risco de problemas cardíacos e morte naqueles com Covid-19. Os autores incluíram novamente Mehra e Desai e, novamente, o banco de dados global QuartzClinical da Surgisphere, desta vez para obter os dados de 1.200 hospitais. O estudo envolveu tantos hospitais e pessoas que suas descobertas, para muitos, pareciam definitivas. A hidroxicloroquina não funcionou para o Covid-19 e, de fato, pode ser perigosa nesses pacientes.

“O estudo da Lancet foi publicado na sexta-feira. Em menos de 24 horas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) interrompeu o braço de avaliação da hidroxicloroquina que estava patrocinando ”, diz Chaccour. “Isso teve consequências enormes. Existem 131 ensaios de hidroxicloroquina Covid-19 registrados. Muitas agências nacionais de financiamento terminaram ou interromperam esses ensaios. Muitos pacientes leem as notícias sobre o estudo. Milhares de pacientes inscritos nesses estudos sentem medo e angústia. Como você pode continuar esses testes agora? Quando os pacientes acabam de ler este medicamento não é bom?”

Na quinta-feira, após crescente preocupação da comunidade médica com o estudo do Lancet e o tal banco de dados, a OMS reverteu a decisão de suspender os ensaios com hidroxicloroquina. Ele também revisou o estudo e descobriu que não havia motivo para interromper os estudos com base naqueles dados. No entanto, os funcionários da OMS também reiteraram que ainda não havia evidências de que a hidroxicloroquina, ou qualquer outro medicamento, reduziria a mortalidade em pacientes que têm Covid-19. 

Chaccour ficou perplexo com o fato de Mehra e Desai estarem publicando esses grandes estudos em periódicos de prestígio a cada poucas semanas. Foi uma pesquisa que levaria meses, pelo menos, para ser escrita, mais [tempo] do que a pandemia existe.

"Tenho sérias preocupações com o banco de dados"

Dessa vez, Chaccour não estava sozinho em suas preocupações. Suas perguntas sobre o artigo foram repetidas por cientistas de todo o mundo que também identificaram falhas sérias e potencialmente fatais no estudo . O Guardian Australia revelou erros nos dados australianos, que superestimaram o número de mortes. Isso levou o Lancet a emitir uma correção, mas Desai insistiu que o erro não alterou as descobertas gerais do estudo - que a hidroxicloroquina era ineficaz e potencialmente perigosa no tratamento de pacientes com Covid-19.

Uma investigação realizada pelo Guardian Australia descobriu que o banco de dados em que os estudos se baseavam continha dados seriamente questionáveis. Desai não respondeu adequadamente a perguntas do Guardian Australia sobre como o Surgisphere, uma vez listada como uma empresa de educação médica, surgiu do nada para se tornar uma empresa de análise de dados que implementa um banco de dados global usando inteligência artificial e compartilhamento de nuvem em questão de meses e com apenas 11 funcionários.

A editore de ciências da Surgisphere, listado no LinkedIn, parece não ter credenciais científicas ou de [banco de] dados. Em vez disso, as pesquisas de seu nome e foto sugerem que ela é uma autora e artista de ficção científica em tempo integral. Pesquisas da diretora de vendas e marketing da empresa, também listadas no LinkedIn, sugerem que ela é uma modelo adulta e embaixadora de marcas, novamente sem formação científica ou referências a um trabalho no Surgisphere em seus sites. A maioria dos perfis do Linkedin para a equipe do Surgisphere foi criada há apenas dois meses.

Desai disse ao Guardian Australia: "A Surgisphere possui 11 funcionários e atua no mercado desde 2008. Nossos serviços de análise de dados de saúde começaram na mesma época e continuaram a crescer desde então." No entanto, as informações sobre o banco de dados apareceram publicamente apenas desde 2019. Antes disso, o Surgisphere parecia publicar ferramentas de educação médica, como livros didáticos. Do banco de dados, Desai disse: "Usamos muita inteligência artificial e aprendizado cibernético para automatizar esse processo o máximo possível, o que é a única maneira de uma tarefa como essa ser possível".

Ele não explicou como a inteligência artificial funcionava para coletar os dados ou como os hospitais implementaram o sistema e alimentaram esses dados. Desai disse mais tarde que a equipe do hospital era responsável pela identificação dos dados dos pacientes antes de inseri-los no banco de dados. Nenhum grande hospital australiano com quem o Guardian Australia ouviu falar sobre o Surgisphere ou tal banco de dados.

Médicos de hospitais de todo o mundo zombaram da ideia de que a equipe teria tempo para desidentificar [proteger] os dados dos pacientes e contribuir com um banco de dados dos EUA no meio de uma pandemia. Desai disse que a maneira como o Surgisphere obteve dados “sempre foi feita em conformidade com as leis e regulamentos locais. Nós nunca recebemos nenhuma informação de saúde protegida ou informação identificável individualmente.”

Chaccour tinha as mesmas perguntas sobre o Surgisphere. Como foi a coleta de dados? E quais hospitais estavam participando? "Minha lista de tarefas do dia-a-dia estava completamente em espera, por uma semana eu olhei para mais nada", diz ele. "E, como resultado, tenho sérias preocupações com o banco de dados que acredito que possam ter grandes falhas." Ele descobriu que os dados raciais foram relatados nos estudos que usaram o banco de dados. "Não está claro como o Surgisphere obtém dados raciais, pois a coleta é incomum na maioria dos países e ilegal em alguns", diz Chaccour. O Surgisphere não respondeu a perguntas do Guardian sobre como os dados étnicos foram coletados.

Também surpreendeu Chaccour que a empresa por trás de um dos maiores e mais rápidos bancos de dados hospitalares do mundo quase não tivesse presença on-line. Seu identificador no Twitter tinha menos de 170 seguidores quando ele o verificou, sem postagens entre outubro de 2017 e 2020; sua página do LinkedIn tem menos de 100 seguidores e seis funcionários, que agora parecem ter reduzido para três, sem postagens antes de março de 2020; sua página do YouTube possui poucos inscritos, dois vídeos e nenhum postado na última década.

Também não está claro onde a empresa está sediada. Seu endereço está listado no John Hancock Center de Chicago. A política de privacidade do QuartzClinical refere-se a um endereço residencial em Illinois. Sua política de ética também não é transparente. Apesar do banco de dados do Surgisphere coletar dados de pacientes, incluindo dados de laboratório e resultados de exames físicos, o estudo publicado no Lancet disse que "a coleta e as análises de dados são consideradas isentas da revisão ética".

Uma história de proclomações ambiciosas

Mas por que fazer isso? Por que Desai permitiria que dados questionáveis ​​fossem confiados por periódicos de prestígio e correria o risco de que os erros fossem detectados pelos editores ou por outros pesquisadores ao redor do mundo depois de publicados?

"Esse cara está voando alto", especula Chaccour. “E ele está gostando da vista lá de cima. Ele não percebe que a cera em suas asas está derretendo. Ele está recebendo honrarias e entrevistas. E acho que talvez seus co-autores tenham sido enganados.”

Desai parece ter um histórico de fazer reivindicações ambiciosas. Oito anos atrás, ele lançou uma campanha de crowdfunding na plataforma Indiegogo, promovendo um dispositivo chamado Neurodynamics Flow. O dispositivo, escreveu Desai na página da campanha, “é um dispositivo de aprimoramento humano da próxima geração que pode ajudar os humanos a alcançar o que nunca se pensou ser possível. Desbloqueie a criatividade humana. Com mais de uma década de pesquisa no ajuste fino do dispositivo, o sofisticado microprocessador de fluxo estimula com precisão várias áreas do cérebro para criar um nível mais alto de função.”

Por uma doação de US $ 100, foi prometido aos patrocinadores do projeto uma cópia assinada de arte 10x10 exclusiva e exclusiva da planta para o protótipo real. Por US $ 500 aos patrocinadores do projeto, foi oferecido um “Fluxo Neurodinâmico na sua escolha de cores com estojo de transporte em microfibra e acessórios. Todos os componentes eletrônicos e microprocessadores são costurados em um dispositivo vestível. Lavável na máquina.” 

A campanha levantou cerca de US $ 300 da sua meta de US $ 10.000. Um dos apoiadores do projeto de Desai perguntou no site: “O que aconteceu com o projeto? Onde está meu privilégio?” Não houve resposta visível no site da Desai. Parece que o dispositivo nunca aconteceu.

“Ferramenta de Previsão de Mortalidade” do Covid-19”  da Surgisphere também foi alvo de críticas. A Surgisphere afirma que suas ferramentas são baseadas em algoritmos de aprendizado informatizado e derivadas de dados em tempo real. Porém, quando diferentes idades são inseridas na ferramenta, parece simplesmente dividi-las por 20 para obter a mortalidade prevista, arredondada para os 0,1% mais próximos. Por exemplo, uma criança de 10 anos de idade teria um risco de morte de 0,5%, de acordo com a ferramenta.

Um médico sênior de doenças infecciosas de Londres preocupado com a ferramenta disse ao Guardian: “Sabemos que isso não é o que acontece em Covid-19, onde há uma relação exponencial entre idade e mortalidade.”

"Infelizmente, a ferramenta do Surgisphere parece ser um artefato voltado para o público, sem dados reais que o direcionem", disse ele. "Dadas as claras falhas de dados apontadas por muitos leitores do artigo da Lancet, é razoável concluir que essa publicação também sofre do mesmo problema fundamental." Desai não respondeu a perguntas sobre a ferramenta. 

Desai também está enfrentando problemas maiores. Em novembro de 2019, duas reclamações por negligência médica foram registradas no tribunal do Condado de Cook. Desai disse em uma entrevista ao The Scientist que considerava qualquer ação contra ele "infundada". Ele disse ao Guardian e ao Scientist que apoia os estudos, mas não explicou como os hospitais se juntam e sincronizam seus dados.

'Existem dúvidas definitivas'

James Heathers, cientista pesquisador da Northeastern University nos EUA, disse que os principais resultados em grandes periódicos médicos podem afetar as políticas médicas em questão de dias, tanto no nível da mudança da prática hospitalar local como na política de saúde do governo. Isso significa que é fundamental que os dados sejam transparentes e fáceis de esclarecer, especialmente em meio a uma pandemia global.

"Se problemas sérios são encontrados com dados em um artigo como esse, além das consequências potencialmente catastróficas para os autores, isso indica um problema de como agregamos e entendemos as evidências", disse Heathers.

“É mais crucial do que em qualquer outro ponto [...] da história moderna que os resultados sejam transparentes, totalmente avaliados e precisos. Isso significa que o código analítico aberto, métodos bem especificados e conjunto de dados inspecionáveis ​​- mesmo que sejam proprietários - devem ser considerados obrigatórios como condições de publicação no momento.”

Stephen Evans, professor de farmacoepidemiologia da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, disse: “Existem dúvidas definitivas sobre a integridade do artigo da Lancet. Em retrospecto, muitos leitores e tomadores de decisão podem ter colocado muita confiança nesse artigo.”

Na quarta-feira, o Lancet admitiu que "importantes questões científicas foram levantadas sobre os dados relatados no artigo".

“Embora uma auditoria independente da procedência e validade dos dados tenha sido encomendada pelos autores não afiliados ao Surgisphere e esteja em andamento, com resultados esperados muito em breve, estamos emitindo uma expressão de preocupação para alertar os leitores sobre o fato de que sérias questões científicas foram trazidos à nossa atenção ”, disseram os editores. O NEJM emitiu uma expressão semelhante de preocupação, afirmando : "Pedimos aos autores que forneçam evidências de que os dados são confiáveis".

Os dados do Surgisphere são utilizados para estudos observacionais retrospectivos, um tipo de estudo que pode ser problemático devido à presença de variáveis ​​não controladas e viés de seleção. Cientistas em todo o mundo e a Organização Mundial da Saúde disseram repetidamente que são necessários ensaios aleatórios de controle para mostrar quais medicamentos, se houver, são eficazes para o Covid-19 e que estes devem ser tornados públicos. Ensaios de controle randomizados são vistos como o padrão-ouro da ciência devido a oportunidades limitadas de viés.

Mehra pediu mais estudos desse tipo antes de tirar conclusões do estudo da hidroxicloroquina. Em resposta a perguntas do Guardian Australia, Desai disse que o artigo da Lancet não deve ser super-interpretado e que o próprio estudo recomendou que os ensaios randomizados de controle fossem "concluídos com urgência".

Mas em um vídeo do YouTube falando sobre o estudo da Lancet, Desai também disse sobre o Surgisphere: "A verdadeira questão aqui é: com dados como esse, precisamos mesmo de um teste de controle aleatório?"

Chaccour achou o comentário desconcertante. Mas ele está mais desapontado que os dados questionáveis ​​de Desai mudaram rapidamente as políticas públicas em todo o mundo. Apesar das críticas generalizadas aos estudos, eles permanecem disponíveis online.

"A política mundial, o financiamento e os ensaios clínicos tem se modificado rapidamente", disse ele. "Agora, entramos em um processo lento de validação das preocupações que adquirimos".


Publicação do THE GUARDIAN

LINK do original AQUI

Fotos do Artigo original do The Guardian

Foto do dr Mandeep Mehra - original AQUI

 

 


sábado, 25 de julho de 2020

Coronavirus - a realidade atual da busca pela vacina


Uma verificação da realidade da vacina

Há muita esperança em avanço, mas uma vacina é apenas o começo do fim.
Por SARAH ZHANG
24 DE JULHO DE 2020
PASSADOS CINCO MESES de pandemia, todas as esperanças da extinção da COVID-19 estão sendo calcadas em uma vacina ainda hipotética. E assim um refrão pegou: talvez tenhamos que ficar em casa - até termos uma vacina. Feche as escolas - até termos uma vacina. Use máscaras - mas apenas até termos uma vacina. Durante esses meses de miséria, esse mantra ofereceu um pequeno vislumbre de esperança. A vida normal está do outro lado, e nós apenas temos que esperar ... até termos uma vacina.
Alimentando essas esperanças estão as projeções extremamente otimistas de uma vacina do governo Trump já para outubro, bem como a cobertura minuto a minuto da mídia dos testes da vacina. Cada semana [ela, a mídia] traz notícias de um “sucesso precoce”, “promissores resultados iniciais”, e ações em alta por causa do “otimismo da vacina.” Mas é improvável que uma vacina para a COVID-19 atenda a todas essas altas expectativas. A vacina provavelmente não fará a doença desaparecer. Certamente a vida não retornará imediatamente ao normal.
Biologicamente, é improvável que uma vacina contra a COVID-19 ofereça proteção completa. Logisticamente, os fabricantes terão que fazer centenas de milhões de doses uma vez confiando, talvez, em tecnologia nunca antes usada para as vacinas e competindo por suprimentos básicos, como frascos de vidro. Então o governo federal terá que alocar doses, talvez por meio de uma colcha de retalhos dos departamentos de saúde estaduais e locais, sem uma infraestrutura ainda existente para vacinar adultos em grande escala. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, que lideraram os esforços de distribuição de vacinas no passado, estiveram surpreendentemente ausentes nas discussões até agora - um sinal preocupante de que as falhas de liderança que caracterizaram a pandemia americana também poderiam atrapalhar esse processo. Para complicar tudo, 20% dos americanos já dizem que se recusam a receber a vacina da COVID-19 e, com outros 31% de incerteza, assim alcançar a imunidade de rebanho pode ser muito mais difícil.
A boa notícia, porque vale a pena dizer, é que os especialistas pensam que haverá uma vacina para a COVID-19. O vírus que causa a COVID-19 não parece ser tão estranho quanto o HIV. Os cientistas passaram da descoberta do vírus para mais de 165 vacinas candidatas em tempo recorde, com 27 vacinas já em testes em humanos . Os ensaios em humanos consistem em pelo menos três fases: Fase 1 para segurança, Fase 2 para eficácia e dosagem e Fase 3 para eficácia em um grande grupo de dezenas de milhares de pessoas. Pelo menos seis vacinas contra a COVID-19 estão em fase de testes ou estão prestes a entrar na Fase 3, o que levará vários meses.
Estamos com quase cinco meses de pandemia e provavelmente serão outros cinco para uma vacina segura e eficaz - supondo que os ensaios clínicos funcionem perfeitamente. "Mesmo quando uma vacina é introduzida", diz Jesse Goodman, ex-cientista chefe da Food and Drug Administration, "acho que teremos vários meses de infecção significativa ou pelo menos de risco de infecção a espreitar".
Tudo isso significa que talvez tenhamos de suportar mais meses sob a ameaça do coronavírus do que já sobrevivemos. Sem as medidas que reprimiram o vírus em grande parte da Europa e Ásia, continuará a haver mais surtos, mais fechamento de escolas, mais solidão, mais mortes pela frente. Uma vacina, quando disponível, marcará apenas o início de uma desaceleração longa e lenta. E a duração dessa desaceleração vai depender da eficácia de uma vacina, do sucesso em fornecer centenas de milhões de doses e da disposição das pessoas para obtê-la. É horrível contemplar o sofrimento que ainda está por vir. É mais fácil pensar na promessa de uma vacina.
"Há muita esperança nessas vacinas", diz Kanta Subbarao, diretora do centro colaborador da gripe da Organização Mundial da Saúde em Melbourne, que também trabalhou em outras vacinas contra o coronavírus. "Ninguém quer ouvir que não está chegando."
VACINAS SÃO, em essência, uma maneira de ativar o sistema imunológico sem doença. Elas podem ser produzidas com vírus enfraquecidos, vírus inativados, proteínas de um vírus, uma proteína viral enxertada em um vírus inócuo ou mesmo apenas o mRNA que codifica uma proteína viral. Ficar exposto a uma vacina é como ter sobrevivido à doença uma vez, sem os inconvenientes. Ainda não se sabe muito sobre a resposta imune a longo prazo ao coronavírus, mas, como meu colega Derek Thompson explicou, há boas razões para acreditar que pegar a COVID-19 protegerá de alguma forma futuras infecções.
A imunidade induzida pela vacina, no entanto, tende a ser mais fraca do que a imunidade que surge após uma infecção. As vacinas são normalmente administradas como injeção direta no músculo. Uma vez que seu corpo reconhece o invasor estrangeiro, ele monta uma resposta imune, por exemplo, produzindo anticorpos duradouros que circulam no sangue.
Mas os vírus respiratórios normalmente não se lançam no músculo. Afinal, eles infectam os sistemas respiratórios e geralmente se infiltram pelas membranas mucosas do nariz e da garganta. Embora as vacinas induzam anticorpos no sangue, elas não induzem tanto nas mucosas, o que significa que é improvável que impeçam a entrada do vírus no organismo. Mas eles ainda poderiam proteger os tecidos mais profundos do corpo, como os pulmões, impedindo que uma infecção piorasse. "O principal benefício da vacinação será prevenir doenças graves", diz Subbarao. É improvável que uma vacina COVID-19 atinja o que os cientistas chamam de "imunidade esterilizante", o que evita completamente a doença.
Uma maneira de aumentar a eficácia de uma vacina contra vírus respiratórios é imitar uma infecção natural, pulverizando vírus vivos, porém enfraquecidos, no nariz. O FluMist, por exemplo, contém vírus da gripe enfraquecidos, e vários grupos de pesquisa estão analisando uma estratégia para a COVID-19. Mas as vacinas de vírus vivos são mais arriscadas porque, bem... o vírus está vivo. "Não queremos pulverizar coronavírus no nariz das pessoas até que tenhamos certeza absoluta de que é realmente um vírus que não pode se espalhar de pessoa para pessoa e que não pode deixar alguém doente", diz Kathleen Neuzil, a diretora do Centro de Desenvolvimento de Vacinas e Saúde Global da Universidade de Maryland. "Só levará tempo."
Com esta primeira geração de vacinas, porém, a velocidade é essencial. Uma vacina inicial pode limitar a gravidade da COVID-19 sem interromper totalmente sua propagação. Pense na vacina contra a gripe, em vez da vacina contra a poliomielite. As diretrizes da FDA para uma vacina COVID-19 reconhecem que pode estar longe de ser 100% eficaz. Para obter a aprovação, diz a agência, uma vacina deve prevenir ou reduzir doenças graves em pelo menos 50% das pessoas que a recebem. "Obviamente, isso não é o ideal", diz Walter Orenstein , pesquisador de vacinas da Universidade Emory, que trabalhou anteriormente como diretor do Programa Nacional de Imunização. "Mas é melhor que zero por cento."
NAS ÚLTIMAS SEMANAS, vários grupos de vacinas têm lançado dados promissores que mostram que suas candidatas podem induzir anticorpos que neutralizam o coronavírus em testes de laboratório.  Seus próximos desafios são sobre escala: testar a vacina em um estudo de Fase 3 com dezenas de milhares de pessoas para provar que evita as infecções no mundo real e, se funcionar, fabricar centenas de milhões, até bilhões, de doses. É por isso que mesmo uma vacina que já foi testada em um pequeno número de pessoas ainda está a meses de distância.
Os ensaios da fase 3 são a maior e a mais longa das três fases - normalmente levariam anos, mas estão sendo comprimidos em meses por causa da pandemia. Ainda assim, os fabricantes de vacinas precisam inscrever dezenas de milhares de pessoas para confirmar a eficácia e procurar efeitos colaterais raros e de longo prazo. Levará tempo para recrutar participantes, tempo para esperar que eles sejam naturalmente expostos ao novo coronavírus, tempo para que quaisquer efeitos colaterais de longo prazo apareçam e tempo para simplesmente analisar todos os dados.
Perversamente, as altas e crescentes taxas de COVID-19 nos Estados Unidos facilitam o teste de candidatos a vacinas aqui. Qualquer participante tem alta probabilidade de que seja exposto ao vírus em algum momento. "Não é uma boa notícia para o nosso país, seja de que forma for, mas ... torna possível acumular casos", diz Ruth Karron , diretora do Centro de Pesquisa em Imunização da Universidade Johns Hopkins, que também atuou no Conselho de Monitoramento de Dados e Segurança do ensaio de vacina Fase 2 da Moderna. A Moderna, uma empresa americana, está realizando seu teste de Fase 3 nos EUA. Um grupo com sede na Universidade de Oxford, que está colaborando com a empresa de biotecnologia suíço-britânica AstraZeneca, está realizando testes no Reino Unido, Brasil e África do Sul - os últimos dois países escolhidos especificamente por causa de seu alto número de casos de COVID-19 .
Nos EUA, a Operação Warp Speed do governo Trump está ajudando vários fabricantes de vacinas a investir em instalações de fabricação enquanto esses testes estão em andamento. Isso poderia reduzir o tempo de atraso entre a aprovação e a disponibilidade de uma vacina, já que as empresas poderiam esperar pela aprovação do FDA antes de aumentar a produção. Mas fazer centenas de milhões de doses ainda é um desafio considerável, especialmente para uma nova vacina.
Os principais candidatos a vacinas COVID-19 contam com tecnologia que nunca foi usada antes em vacinas aprovadas. A vacina da Moderna, por exemplo, é um pedaço de RNA que codifica uma proteína de coronavírus. A vacina de Oxford e AstraZeneca liga uma proteína de coronavírus a um adenovírus de chimpanzé. Nenhum dos dois foi fabricado antes na escala necessária.
Considere o que aconteceu em 2009, o momento mais recente em que o mundo se mobilizou para produzir vacinas para impedir uma pandemia. A doença era o H1N1, mais conhecido como "gripe suína", e os fabricantes de vacinas tinham a tarefa muito mais simples de submeter a cepa H1N1 à vacina contra a gripe sazonal que produzem todos os anos. Apesar de muitos e muitos anos de experiência na fabricação de vacinas contra gripe, os fabricantes encontraram um problema inesperado. A maioria das vacinas contra gripe é feita a partir de vírus cultivados em ovos de galinha e, por algum motivo, a cepa H1N1 não cresceu muito bem nos ovos inicialmente. "As quantidades produzidas a partir de uma determinada quantidade de óvulos foram muito inferiores ao normal", diz Goodman, que liderou a resposta do FDA à pandemia em 2009. "Então isso realmente atrasou as coisas". Então, uma vez que milhões de doses estavam em andamento, diz Goodman, não havia instalações suficientes que pudessem empacotar a vacina a granel em frascos individuais.
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos criou uma rede de instalações de preenchimento e acabamento para resolver esse problema no futuro. No momento, a Operação Warp Speed também está firmando contratos para produzir as milhões de seringas e frascos de vidro necessários para embalar uma vacina COVID-19. Sem um planejamento cuidadoso nessas frentes, os EUA poderiam se deparar com um cenário desmoralizante em que as vacinas estão disponíveis, mas não há como levá-las fisicamente às pessoas.
MESMO SE TUDO isso vai bem: os primeiros candidatos são eficazes, os ensaios se concluem rapidamente, a tecnologia funciona, outra enorme tarefa está à frente: quando as vacinas são aprovadas, 300 milhões de doses não estarão disponíveis de uma só vez, e um sistema é necessário para distribuir suprimentos limitados ao público. Esse é exatamente o tipo de desafio pelo qual o governo dos EUA se mostrou despreparado nessa pandemia.
Na pandemia de H1N1, o governo dos EUA comprou as vacinas e alocou doses aos departamentos de saúde estaduais e locais, que por sua vez vacinaram as pessoas através de clínicas de massa, bem como empregadores, escolas, hospitais, farmácias e consultórios médicos. Em todo o país, o programa acabou vacinando cerca de um quarto de todos os americanos - a demanda caiu porque a pandemia atingiu o pico não muito tempo depois que a vacina ficou disponível.
O programa de vacinação de 2009 foi desenvolvido com base na infraestrutura do Programa de Vacinas para Crianças, no qual o CDC compra e distribui vacinas para estados para crianças que geralmente não têm seguro ou usam o Medicaid. Os gerentes de imunização que trabalham nesses programas são versados nos meandros do armazenamento e distribuição de vacinas, como a manutenção de uma cadeia de refrigeração para vacinas que podem se tornar ineficazes à temperatura ambiente. Mas, como trabalham com vacinas infantis, lidam principalmente com os consultórios de pediatras. "Não tínhamos relacionamento com hospitais e internistas e pessoas que vacinavam adultos", diz Kelly Moore, que era o diretor do Programa de Imunização do Tennessee em 2009. Em agosto daquele ano, dois meses antes do primeiro envio da vacina, a equipe de Moore criou uma inscrição no registro estadual de imunização e enviou um boletim informativo toda sexta-feira com atualizações e módulos de treinamento para o manuseio de vacinas.
"Infelizmente", diz Moore, "essa rede não foi mantida porque não temos outras vacinas para enviá-las há 11 anos". As informações de contato estão desatualizadas. A reconstrução dessa rede para adultos será ainda mais importante com a COVID-19. Embora a vacina contra o H1N1 tenha sido recomendada para todas as idades, o foco estava nas crianças, para as quais a gripe era particularmente perigosa. O oposto é verdadeiro para a COVID-19, que é mais uma ameaça para os adultos mais velhos.
Alguns dos principais candidatos a vacinas COVID-19 também podem apresentar novos desafios logísticos, se exigirem armazenamento a temperaturas tão baixas quanto -80 graus Celsius ou doses múltiplas para serem eficazes. De fato, é provável que uma vacina COVID-19 exija duas doses; o primeiro inicia o sistema imunológico, permitindo que o segundo induza uma resposta imunológica mais forte. Os funcionários teriam que equilibrar a administração de uma dose ao maior número possível de pessoas com a segunda dose àqueles que já tinham uma. "Essa foi uma complicação que não enfrentamos em 2009 e ficamos muito agradecidos", diz Moore.
Embora o CDC tenha liderado a distribuição das vacinas contra a H1N1 em 2009, Claire Hannan, diretora executiva da Association of Immunization Managers, diz que a agência está estranhamente silenciosa sobre os planos para a vacina COVID-19 desde abril. "Inicialmente, estávamos planejando ligações com o CDC imediatamente", diz ela. "E então nada." Ela tentou, sem sucesso, entrar em contato com a Operação Warp Speed, que sugeriu que o Departamento de Defesa também pode se envolver na distribuição de vacinas. “Continuamos a fazer ao CDC muitas e muitas perguntas. E eles não sabem”, diz ela.
O Comitê Consultivo para Práticas de Imunização do CDC também é normalmente responsável por recomendações sobre como priorizar vacinas. O comitê, composto por especialistas externos, reuniu-se pela última vez no final de junho, quando discutiram a priorização de vacinas para profissionais de saúde, idosos e pessoas com condições subjacentes. Eles também consideraram priorizar a vacinação por raça, dadas as disparidades raciais nos casos de COVID-19. Mas agora a Academia Nacional de Medicina está convocando um painel sobre o mesmo tópico, o que novamente causa confusão sobre quem é responsável por tomar essas decisões.
Em 2009, o trabalho de Moore foi colocar em prática as recomendações do comitê consultivo do CDC. Duas ou três vezes por semana, ela recebia um e-mail do distribuidor de vacinas do CDC informando o número de doses disponíveis para todo o seu estado. Na prática, porém, uma remessa inicial de vacinas pode não ser suficiente para cobrir todos os membros do grupo de maior prioridade, como os profissionais de saúde. Cabe a pessoas como Moore decidirem qual hospital recebeu quantas doses, com a promessa de mais a caminho na próxima semana. Em seguida, hospitais individuais administram as vacinas reais a seus funcionários com base no status de prioridade.
Este sistema deve ser flexível e responsivo às condições locais, mas também significa que a disponibilidade de uma vacina pode parecer variar de um lugar para outro. Por exemplo, Emily Brunson, antropóloga da Texas State University que estuda vacinas, diz que em 2009 houve casos em que um distrito interpretou estritamente as recomendações, dando a vacina apenas a grupos de alta prioridade e um distrito vizinho a ofereceu a qualquer pessoa que queria isso. A decisão de distribuir a vacina pelos centros de saúde dos funcionários em Nova York, que incluía várias empresas de Wall Street, também causou uma grande reação. "Há muitas maneiras pelas quais as coisas podem ser mal interpretadas", diz Brunson. E durante uma escassez inicial, essas decisões podem parecer injustas - especialmente devido às tensões geradas no início da pandemia, quando os ricos e os famosos estavam fazendo testes para a detecção da COVID-19 enquanto pessoas comuns eram rejeitadas nas clínicas.
Se a pandemia até agora é alguma indicação, é provável que um programa de vacinação ocorra em um contexto de partidarismo e desinformação. As teorias da conspiração já estão se espalhando sobre a vacina COVID-19 , algumas delas completamente estranhas. Mas a ênfase na velocidade - como em "Operation Warp Speed " - também criou preocupações reais sobre o lançamento de vacinas no mercado. Em uma audiência no congresso com cinco fabricantes de vacinas, na terça-feira, os funcionários da empresa tiveram que recuar repetidamente contra a ideia de que o setor poderia cortar custos para uma vacina COVID-19.
“Estaremos em uma situação em que algumas pessoas estarão desesperadas para receber a vacina e outras terão medo de recebê-la. E provavelmente haverá muitas pessoas entre as quais têm um pouco de ambos ou não têm certeza”, diz Michael Stoto , pesquisador em saúde pública da Universidade de Georgetown. Uma vacina, especialmente uma nova que não oferece proteção completa contra a COVID-19, exigirá uma comunicação cuidadosa sobre o risco. "O fato de não sabermos usar máscaras direito tornará isso mais difícil", acrescenta. Dado o número de americanos que atualmente não têm certeza ou se opõem à vacina COVID-19, Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, alertou que mesmo uma vacina pode não levar o país a obter imunidade se muitas pessoas a recusarem.
Para os americanos que depositam suas esperanças em uma vacina, um lançamento mal feito poderia parecer mais um exemplo de falha em tempos de COVID-19. Isso pode ter consequências desastrosas que duram muito além da própria pandemia. Brunson teme que esse cenário possa minar a confiança nos conhecimentos de saúde pública e em todas as vacinas. "Ambos seriam desastres", diz ela, "além da própria COVID ser um desastre". Isso poderia significar, por exemplo, novos ressurgimentos de doenças evitáveis por vacinas, como sarampo, e um desafio ainda maior ao combater pandemias futuras.
Apesar de todas as incertezas que ainda restam pela vacina COVID-19, vários especialistas estavam dispostos a fazer uma previsão. "Acho que a pergunta mais fácil de responder é: 'Esse vírus vai desaparecer?' E a resposta é: ' Não '”, diz Karron, especialista em vacinas da Johns Hopkins. O vírus já está muito disseminado. Uma vacina ainda pode atenuar casos graves; poderia facilitar a convivência com a COVID-19. É provável que o vírus esteja aqui, mas eventualmente a pandemia terminará.

SARAH ZHANG é escritora do The Atlantic.
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