![]() |
No verão de 2021 várias praias no Brasil estiveram repletas de pessoas, e ao que parece esse comportamento irresponsável está relacionado ao caos sanitario que rompeu em março |
DECISÕES ARRISCADAS, PERDAS IRREPARÁVEIS
(Como a promoção de aglomerações acelerou o curso das contamições e mortes na pandemia da gripe "espanhola")
José Carlos Brasil Peixoto, médico, 17/03/2021
Em saúde pública uma das medidas mais óbvias para conter
doenças infecciosas é conter os vetores. Quando temos a dengue o objetivo é
eliminar o mosquito. O mosquito não é o agente da dengue. O agente é um vírus.
Mas o transportador contaminante é o inseto. A peste bubônica é causada por
bactéria descoberta em 1894, mas a transmissão depende de uma pulga que está prioritariamente
em ratos (e outros mamíferos também). Assim seu controle depende de práticas
sanitárias que reduzam a população de ratos. Então é fundamental se descobrir
os vetores para controlar as doenças infecciosas.
No caso das doenças respiratórias o vetor é o próprio homem.
Independentemente de onde tenha sido a origem do armazenamento original do
vírus (na natureza) dos quadros respiratórios, uma vez entre os humanos, os
próprios humanos passam a transmitir entre si. O vetor é um ser humano, que
pode ser seu pai, sua mãe, seu filho, seu amigo, seu vizinho, sua empregada, o
motorista, um entregador de encomendas. Pode ser qualquer um!
Isso obviamente não é um segredo. Não é uma afirmação espetacular.
É apenas um fato. Um intransponível “detalhe” da natureza dessas enfermidades.
Em 10 de agosto de 1918 o médico e major do exército dos
Estados Unidos, Dr. Joseph Capps, teve um artigo seu publicado sobre medidas
para prevenção e controle de doenças respiratórias. Ele dizia que era
importante o uso de máscaras e eliminar aglomerações. Descreveu algumas estratégias
simples de implementar nos acampamentos militares.
Era um período difícil. O país enfrentava a fúria da gripe
espanhola (que na verdade parece ser americana mesmo, com os primeiros casos
conhecidos num inverno ao final de janeiro de 1918, no Condado de Haskell,
Kansas, sendo o médico Loring Miner o primeiro a tratar e informar o Serviço de
Saúde Pública dos EUA sobre essa estranha gripe de evolução muita rápida e muitas
vezes letal) que percorria o país graças a generosa facilidade do estado de
guerra que o pais vivia, onde um enorme número de pessoas, a maioria jovens, se
movimentavam por todo o território americano. E principalmente, geravam fantásticas
aglomerações. E desafiar aglomerações inevitavelmente gerava milhares de
doentes e ... milhares de mortes.
Um exemplo muito marcante foi a experiência do coronel
Charles Hagadorn, que em agosto de 1918 assumiu o comando de Camp Grand, estado
de Illinois, reconhecido na época como “um dos mais brilhantes especialistas
nas fileiras do exército regular”. Tinha lutado em Cuba, Filipinas e um ano antes
participara da caça a Pancho Villa no México. Essa instalação militar estava
com 40 mil homens a mais do que os 30 mil que havia em junho do mesmo ano. É
uma região onde o inverno pode ser demasiado frio. Havia regulamentos baseados
em saúde pública que definiam o espaço de cada soldado nas barracas. Mas o
coronel decidiu ignorar tais recomendações. E cada vez chegavam mais soldados. Numa
estação de treinamento militar próxima aos Grandes Lagos a epidemia já tinha
chegado. Apenas 160 km de distância. Provavelmente a equipe médica deve ter se
posicionado contrário ao plano de Hagadorn. Mas ele divulgou uma ordem dizendo
que “...era uma necessidade militar a aglomeração das tropas... acima da
capacidade autorizada... isso deve ser colocado em prática imediatamente...”
No dia seguinte a emissão da ordem, em 21 de setembro, vários
homens ficaram doentes. Foram isolados. Mas no outro dia mais 108 homens deram
entrada no hospital da base. Em 48 horas todos os grupos da base estavam
contaminados (afinal, como já era sabido, a contaminação acontecia antes de
reconhecerem sintomas, o chamado período de incubação).
Sucessivamente 194, 371 e 492 soldados iam adoecendo diariamente. E após quatro dias, iniciaram as mortes. Em seis dias o hospital passou de 610 para 4102 pacientes.
O acampamento parou o treinamento de guerra para tentar estancar o morticínio. Mas a própria equipe médica e de enfermagem começou a sucumbir.
Em 4 de outubro mais de cem homens morreram em um único dia. A seguir mais 1810 ficaram enfermos em um dia. E os doentes dessa gripe eram pacientes gravíssimos.
Em 8 de outubro o coronel Hagadorn recebeu uma última taxa
de mortalidade em seu escritório no quartel general. Sua mesa estaria cheia de documentos
e relatórios de doença e perdas de vidas humanas. Ele, que há um mês tinha ordenado
permitir aglomerações, pois afinal era apenas uma gripe, tomou seu telefone
e ordenou a um sargento que todos saíssem do prédio para uma inspeção no
lado de fora. Era sua última e extravagante ordem. Em menos de uma hora um tiro
de pistola foi ouvido dentro da instalação. A perda provavelmente evitável de tantas
vidas dependentes de seu comando lhe exigiu uma última atitude de honradez: dar
fim à própria vida.
Fique em casa. Só saia por motivos muito importantes. Não transite. Se ocorrer um acidente pode não
haver vaga em hospital. Use todo o conhecimento, antigo, mas eficiente, para
não ser um cúmplice de dor e perdas inestimáveis, porque se houver consciência,
vai ser difícil suportar a responsabilidade da morte sobre seus ombros...
(*) Baseado em informações do livro "A Grande Gripe" de John M Barry
(*) A foto da praia é do site de fotos gratuitas pixabay AQUI