quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Coronavirus - reflexões sobre a recusa ao uso de máscaras

 



Estamos ainda em meio à pandemia. A vacinação finalmente surge no horizonte, mas no Brasil, seu emprego massivo ainda parece meio distante. Por enquanto é fundamental seguirmos regras simples e diretas como forma de proteção. Elas não são inéditas. Se estudarmos a pandemia da gripe espanhola de 1918 vamos observar que esse foi o principal método de controle da devastadora enfermidade. Curiosamente essa doença matou um pouco mais de 600.000 pessoas nos Estados Unidos, e cem anos depois a covid-19 deverá alcançar a mesma marca (deve ultrapassar, na verdade). As regras são super simples: distanciamento, higiene constante de mãos, objetos de contato e uso de máscaras. Da mesma forma como aconteceu um século antes, houve pessoas que não aceitavam bem todas essas recomendações, especialmente no uso de máscaras. Como se sabe nos países orientais, esse cuidado é facilmente assumido pela população. 


No entanto no ocidente esse tipo de comportamento é considerado extravagante e provavelmente esteja arraigado a preconceitos infames como o da fraqueza, covardia, baixa masculinidade entre outras. Não é apenas um desrespeito ao coletivo, mas eventualmente uma presunção de poder supremacista baseado na teoria pseudocientífica de seleção natural dos mais fortes, que afinal de contas era muito difundida no início do século XX. Essa ideologia deixou terríveis marcas na história médica, baseada na eugenia, e que deixaria seus piores frutos em experiências assustadoras como deixar negros com sífilis à própria sorte (estudo de Tuskegee) por 40 anos, mesmo após a descoberta do seu tratamento (o da penicilina, descoberto em 1928 e utilizável como medicação em 1941). Sabemos que o modus operandis nazista que precedeu a segunda mundial tem como alicerce essa mesma base teórica. 

Às vezes é possível se ouvir argumentos sem consistência contra o uso de máscaras. Um dos mais pífios diz respeito ao fato de gerar doenças porque segura o gás carbônico. No entanto o tamanho da partícula de CO2 é de 0,5 nanômetros enquanto a permeabilidade de uma mascára, N95, por exemplo é de 300 nanômetros. Por outro lado, embora o vírus sars-cov2 tenha um tamanho de 120 nanômetros, ele se dispersa no ar em gotículas respiratórias de tamanhos variados conforme for da tosse ou espirros, sendo medidos em micrômetros (que é 1000 x maior que o nanômetro). Uma antiga tabela já mostrava que a maior parte das gotículas da tosse fica  entre  8 - 16 micrômetros, e do espirro 4 - 8 micrômetros, sendo portanto facilmente bloqueados pelo uso de máscaras. Há uma boa chance de alguém ter sido mal informado sobre a segurança e eficiência do uso de máscaras faciais. Se esses rumores fossem verdadeiros, a prática de uso de máscaras em ambientes cirúrgicos e odontológicos seria algo perigoso e ineficaz. Sabemos porém, que isso é fundamental para segurança dos profissionais de saúde e dos próprios pacientes.

Na verdade a rejeição ao uso de máscaras e outros comportamentos negacionistas são de base profundamente picárdicas. É um comportamento desumano. Extrapola o egoísmo. As vezes se ouve argumentos estranhos como uma rebeldia à recomendação de se permanecer em casa sempre que for possível (confinamento voluntário). Isso seria algo que afeta a liberdade de ir e vir. No entanto normalmente as pessoas ficam em casa quando ficar na rua parece ser inseguro ou demasiado desafiador (temporais, violência urbana, por exemplo). Uma pandemia que tem mais de 80 % de transmissores assintomáticos certamente proporciona um ambiente externo de risco. 

Outras pessoas, mostrando sua escancarada desumanidade, dizem que todos vão morrer de alguma forma. Esse argumento é profundamente contrário ao senso civilizatório de protegermos os mais frágeis e de os expormos a riscos conhecidos. Os maiores movimentos humanísticos ocorreram no sentido de se prevenir a ocorrência de mortes evitáveis. O hospital só existe por isso. A rede de esgoto e os serviços de limpeza urbana também. Sim, temos feito muitos esforços ao longo dos tempos para nem precisar de uma internação hospitalar. Então quando alguém diz que não precisamos de cuidados exagerados, essa pessoa é profundamente ignorante da história civilizatória. Não há exagero quando o tema é a segurança das pessoas. Especialmente quando isso exige, convenhamos, comportamentos relativamente fáceis de serem postos em prática no plano individual. 

Mas ainda assim lidamos com indivíduos refratários ao emprego de máscaras. O artigo a seguir foi publicado no excelente The Conversation - e faz a indagação do que se dizer a esses indivíduos, numa perspectiva filosófica. Tentamos manter a elegância para lidar com esse comportamento abjeto, estimulado por figuras relevantes publicamente. Porém não deveríamos nos esquecer que promover comportamentos que coloquem pessoas em risco é um crime.

 

Na época da pandemia de COVID-19, o que você deveria dizer a alguém que se recusa a usar máscara? Uma reflexão filosófica 

(Artigo de Collin Marshall*) Vários estudos mostraram que as máscaras reduzem a transmissão de gotículas carregadas de vírus de pessoas com COVID-19. No entanto, de acordo com uma pesquisa do Gallup, quase um quinto dos americanos diz que raramente ou nunca usa máscara em público.

Isso levanta uma questão: os "anti-máscaras" podem ser persuadidos a fazer uso desse equipamento de proteção?

Para alguns, pode parecer que tal questão não tem dimensão ética. Usar máscaras salva vidas, então todos deveriam fazer isso. Alguns até acreditam que os anti-máscaras são simplesmente egoístas.

Mas como um filósofo que estuda ética e persuasão, argumento que as coisas são mais complicadas do que isso.

Kant (o filósofo) sobre amor e respeito

Para começar, considere uma das estruturas éticas mais influentes no pensamento ocidental: a do filósofo alemão Immanuel Kant.

De acordo com Kant, a moralidade é basicamente respeito e amor. Respeitar alguém, afirma Kant, é "limitar nossa autoestima pela dignidade da humanidade em outra pessoa." Em outras palavras, devemos evitar minar a dignidade dos outros.

Ao lado do respeito, para Kant, devemos também mostrar aos outros um certo tipo de amor. Amar os outros no sentido moral, escreve ele , não é ter um sentimento, mas sim "tornar meus os fins dos outros (desde que não sejam imorais)."

Ou seja, o amor moral requer que ajudemos os outros a alcançar seus objetivos, desde que esses objetivos não sejam imorais.

De modo geral, isso significa que tratar bem os outros exige uma compreensão sobre o que lhes confere dignidade e as coisas que, em última análise, estão tentando alcançar.

O que é dignidade social?

Alguém poderia perguntar por que tentar persuadir alguém a usar uma máscara ameaçaria sua dignidade.

Considere um tipo de dignidade em particular: dignidade social. De acordo com a eticista Suzy Killmister, a dignidade social consiste em alguém viver de acordo com os padrões que sua comunidade exige dela. Os padrões específicos que importam são aqueles que a comunidade considera “vergonhoso” violar.

A dignidade social de alguém pode ser prejudicada, quer ela aceite ou não os padrões de sua sociedade. Uma maneira de isso acontecer é se ela for membro de diferentes grupos sociais com padrões conflitantes.

Por exemplo, imagine uma adolescente de uma comunidade religiosa conservadora que frequenta uma escola pública secular. De acordo com os padrões de sua comunidade religiosa, é vergonhoso vestir-se indecentemente. De acordo com os padrões de seus colegas de classe, porém, é vergonhosamente fora de moda se vestir de maneira conservadora. Ela enfrenta um dilema de dignidade: não importa como ela se vista, ela não pode alcançar a dignidade social plena.

Vergonha e padrões sociais

Como uma maioria significativa dos americanos usa máscaras e por causa de sua importância na proteção da saúde pública, o uso de máscaras se tornou um padrão social relacionado à vergonha.

Em resposta, a epidemiologista Julia Marcus advertiu recentemente que não é eficaz envergonhar pessoas que não usam máscaras. Em vez disso, ela propôs abordar os anti-máscaras com empatia.

Para ver a importância ética da sugestão de Marcus, considere outra descoberta de uma pesquisa do Gallup: embora a maioria dos grupos sempre ou com frequência use máscaras em público, isso não é verdade para os republicanos. Mais de 50% dos republicanos dizem que nunca, raramente ou apenas às vezes o fazem. Da mesma forma, outros estudos encontraram diferenças regionais nítidas no uso da máscara.

Um republicano cujo grupo social considera o uso de máscara vergonhoso enfrenta um dilema de dignidade. Por exemplo, um xerife no estado de Washington disse a uma multidão que o aplaudia que ele não aplicaria o mandato da máscara do estado. Seu conselho foi: “Não seja uma ovelha”.

Da mesma forma, o psicólogo Peter Glick sugeriu que usar máscara é visto por alguns grupos como “pouco masculino ” porque lhes parece uma fraqueza.

As pessoas nessas comunidades estão sujeitas a padrões anti-máscaras, mesmo que os padrões da sociedade em geral exijam máscaras. Sua dignidade está, portanto, em uma posição precária. Falando eticamente, então, qualquer compromisso respeitoso com eles exige um reconhecimento desse fato, não uma tentativa direta de persuasão.

Fazendo pequenos esforços

Lembre-se de que Kant diz que, além de respeitar a dignidade dos outros, devemos também ajudá-los a alcançar seus objetivos, desde que esses objetivos não sejam imorais. Recusar-se a usar uma máscara pode muito bem ser imoral.

No entanto, tentar manter o status social de acordo com os padrões da sociedade não é intrinsecamente imoral. Se é isso que está motivando as recusas dos anti-máscaras, a estrutura de Kant poderia ajudar os promotores do uso de máscaras a ver as nuances éticas da situação.

Reconhecer esse desafio ético também pode ajudar aqueles que buscam persuadir os anti-máscaras. Eles podem precisar oferecer aos anti-máscaras alguma maneira de manter sua dignidade em seus grupos sociais anti-máscara enquanto usam uma máscara em outros ambientes.

Por exemplo, eles podem encontrar exemplos de conservadores, incluindo o presidente Trump , que usam uma máscara em alguns contextos, mas não em outros. Afinal, mesmo pequenos esforços para usar a máscara podem salvar vidas.

Original AQUI

(*) Professor de Filosofia da Universidade de Washington)

As fotos são de uso livre de PEXELS