quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Porque esse estudo sobre dietas com pouca proteína não informa nada para você





Mais uma análise crítica responsável de Georgia Ede sobre pesquisas que vem a público como manchetes ardilosas, que nem de longe poderiam ser recebidas pela população em geral como recomendações sérias quanto a alimentação e sua implicação à saúde humana. A manchete chama a atenção por se colocar no sentido contrário de um manancial de pesquisas que dizem justamente o contrário, num tema extremamente sensível como a prevenção de enfermidades cognitivas da terceira idade. Claro que muitos não levam a sério simplesmente por que seria uma pesquisa com ratos, mas é sempre melhor entender de forma judiciosa porque esse tipo de pretensa ciência é muito mais um lixo travestido de pesquisa nutricional.

A verdade sobre dietas com baixo teor de proteína, ricas em carboidrato e o envelhecimento cerebral

Você deve evitar a carne e consumir os bolinhos?
Publicado em 04 de dezembro de 2018
(Autora: Georgia Ede)
Um novo estudo realizado na Universidade de Sydney e publicado na revista Cell Reports é inspirador para manchetes por todo o mundo, como esta:

Low-protein, high-carb diet may help ward off dementia



No estudo, os cientistas compararam dietas contendo diferentes quantidades de proteínas e carboidratos com uma dieta de baixa caloria. Seus resultados sugerem que dietas com baixo teor de proteína e maior teor de carboidratos podem, em alguns casos, fornecer benefícios cerebrais sutis semelhantes aos benefícios observados com a restrição calórica. Os pesquisadores concluíram que “uma dieta com muito pouca proteína e alto teor de carboidratos pode ser uma intervenção nutricional viável para retardar o envelhecimento cerebral ”.
Isso, apesar de um crescente corpo de evidências clínicas sugerindo que dietas com pouco carboidrato podem ser úteis para pessoas com problemas cerebrais, incluindo:
2)   transtornos psiquiátricos e cognitivos, como a doença de Alzheimer
Então o que está acontecendo aqui?
Se você acredita nos benefícios para a saúde de dietas ricas em carboidratos, você pode ficar de olho nas manchetes parecerem ser merecedoras de confiança e se sentir seguro de que o estudo confirma suas crenças. Você poderia apontar para o fato de que este estudo representa um esforço colaborativo de cientistas internacionais de lugares de prestígio como a Universidade de Sydney, o National Institutes of Health e a Universidade de Harvard. Você pode até mesmo passar o tempo lendo o artigo de 38 páginas, admirando o quão sofisticada e impressionante a ciência parece.
Se você acredita nos benefícios para a saúde de dietas com pouco carboidrato, pode decidir descartar este estudo simplesmente porque é um estudo com camundongos, ou pode gastar um tempo precioso analisando os resultados e julgá-los como fracos ou inconclusivos.
No entanto, a melhor e mais eficiente maneira de avaliar este (ou qualquer outro) estudo de nutrição em roedores é ir direto para a seção de métodos e observar a ração. [Cuidado: o que você descobrirá em quase todos os casos pode chocar, enfurecer, confundir ou entreter você, dependendo de sua estrutura de personalidade.]
Mostre-me a ração
Inquestionavelmente, a única coisa mais importante que precisamos saber sobre qualquer estudo de dieta é a composição da ração - mas em nenhum lugar dentro deste relatório encontramos uma descrição de qualquer uma das cinco rações que esses animais foram alimentados. Tudo o que nos é dado é essa referência vaga à comida sobre a qual as rações foram baseadas:
“As rações foram adquiridas da Specialty Feeds (Perth, Austrália Ocidental) e formuladas para ter o mesmo conteúdo energético total (isocalórico), mas com diferentes proporções de proteína para carboidrato e com gordura fixa. Cada dieta foi baseada na [ênfase minha] dieta de roedores AIN-93G (Specialty Feeds) e formulada para conter todas as vitaminas, minerais e aminoácidos essenciais para o crescimento em camundongos. O principal componente proteico da dieta era a caseína, o principal componente de carboidratos era o amido, e o principal componente de gordura era o óleo de soja”.
Para encontrar os ingredientes da fórmula base AIN-93G nós (não devemos) ter que fazer uma pesquisa no Google. [Caça à ração tem sido um dos meus passatempos favoritos, estou acostumada com este jogo.]

Observe que esse “alimento” - feito de caseína (proteína isolada do leite), amido, açúcar e óleo de canola - é essencialmente o equivalente a um cone de sorvete altamente processado, mas no formato de pastilhas de ração para camundongos.
Pobres ratos...
Camundongos selvagens são “onívoros oportunistas” adaptados para comer uma grande variedade de alimentos vegetais e animais encontrados no ambiente natural - sementes, frutas, insetos, nozes, etc. As dietas deste estudo não continham nozes, sementes, grãos integrais, insetos, folhas ou bagas.
Não existe um único alimento saudável e adequado para um rato nesta fórmula. Qualquer mudança que os pesquisadores possam ter feito nessa dieta teria sido uma melhoria.
Todos os carboidratos não são criados iguais
Existem três tipos de carboidratos na ração AIN93G:
63 por cento é o amido de trigo, um carboidrato complexo (longas cadeias de moléculas de glicose) feito pela remoção de proteínas e fibras da farinha de trigo.
21% é um amido "dextrinizado", um carboidrato refinado (tratado com calor e ácido para quebrar suas longas cadeias de moléculas de glicose em pedaços menores, mais rapidamente digeríveis).
16% é sacarose, também conhecido como açúcar de mesa (50% de frutose, 50% de glicose).
Dado tudo o que sabemos sobre o açúcar e a doença, seria de esperar que os cientistas interessados ​​na saúde do cérebro eliminassem, pelo menos, o açúcar e outros hidratos de carbono refinados de suas rações experimentais. Infelizmente, não nos dizem quais tipos de carboidratos estão presentes nos pellets experimentais, apenas que "o principal componente de carboidratos era o amido".
Os autores escrevem que suas rações foram “baseados em” AIN93G, que contém óleo de canola, enquanto as dietas que eles usaram no estudo continham óleo de soja. Não temos como saber quais outras diferenças importantes podem ter ocorrido entre o AIN93G e as dietas reais usadas no estudo, porque as dietas experimentais não foram descritas.
Como uma seção de métodos como essa passa pela revisão científica por pares? Os cientistas que realizam experimentos dietéticos não deveriam divulgar os ingredientes das dietas que estão estudando?
O experimento
Com essas sérias preocupações à parte, vejamos o que os pesquisadores estavam tentando fazer. Eles explicam que estudos em animais sugerem que a restrição calórica pode ter efeitos positivos sobre a cognição e o envelhecimento cerebral, mas reconhecem que a restrição calórica a longo prazo é difícil de ser sustentada pelos seres humanos. Então, eles se propuseram a explorar se a redução de proteínas e o aumento de carboidratos poderiam ter efeitos positivos similares no cérebro, sem a necessidade de restrição calórica.
Eles criaram uma ração contendo 19% de proteína, 63,4% de carboidratos e 17,8% de gordura para representar uma dieta padrão de “controle” (listada na parte inferior da tabela abaixo). Eles também alimentaram alguns dos camundongos com uma dieta 20 por cento mais baixa em calorias, restringindo-os a ingerir uma quantidade menor do que a ração padrão (com o rótulo "CR" para "restrição de calorias" na linha superior da tabela abaixo). Eles então projetaram três versões de baixo teor de proteína e alto teor de carboidrato da ração padrão substituindo algumas das proteínas por carboidrato.
Observe que a variação de proteína era grande - variando entre aproximadamente 5% e 19% - então a dieta de baixa proteína continha quase quatro vezes menos proteína que a dieta rica em proteínas. Todas as cinco dietas eram muito altas em carboidratos, e a variação em carboidratos era relativamente pequena, variando de cerca de 63% a 77%, significando que a dieta “rica em carboidratos” continha apenas cerca de 1,2 vezes mais carboidratos do que a dieta padrão. Dietas de baixo carboidrato de qualquer tipo não foram incluídas neste experimento.
As versões com menos proteínas e carboidratos da dieta substituíram as calorias da caseína por calorias de carboidratos - mas que tipo de carboidrato? Sabemos que o AIN93G continha três tipos de carboidratos, cada qual refinado em uma diferente extensão, mas não sabemos que tipo(s) de carboidrato(s) estavam presentes nas rações experimentais. Isso é importante porque os carboidratos refinados podem colocar em risco a saúde algo que não ocorre com alimentos integrais com fontes complexas de carboidratos. Se as rações com maior quantidade de carboidratos também contivessem carboidratos menos refinados, isso poderia ter um impacto sobre os efeitos na saúde pela dieta, mas os autores não abordam a questão da qualidade dos carboidratos de qualquer maneira.
Leite é diferente
Mas nem tudo é somente sobre carboidratos. A qualidade das proteínas também é importante.
A única fonte de proteína na ração de laboratório era a caseína - uma proteína isolada do leite de vaca que os camundongos selvagens nunca encontrariam naturalmente enquanto se movem apressadamente atrás de suas demandas diárias. Existe até pesquisa sugerindo que alguns ratos podem ter uma aversão natural à caseína: 
"Quando a caseína intacta foi oferecida aos roedores, houve alguns relatos de que os indivíduos se recusaram a comê-la, mesmo na medida em que sofreriam de perda de peso e morte".
É lamentável que tantas rações de laboratório usem extrato de caseína como fonte de proteína, porque a proteína láctea é marcadamente diferente da proteína encontrada na carne de animais (mamíferos, aves, peixes, insetos, etc.) e tem efeitos hormonais únicos no consumidor, especialmente nos níveis de insulina.
"Estudos de intervenção fornecem evidências de que as proteínas lácteas têm efeitos mais potentes sobre a secreção de insulina e incretinas em comparação com outras proteínas animais comumente consumidas." 
Altos níveis de insulina e resistência à insulina foram estabelecidos como principais forças motrizes por trás da maioria dos casos de doença de Alzheimer e muitas outras doenças crônicas que associamos ao envelhecimento. Portanto, pode ser sensato limitar a ingestão de proteína láctea, mas e quanto aos outros tipos de proteína? Os resultados teriam sido diferentes se uma fonte de proteína não láctea tivesse sido usada?
O principal autor do estudo em pauta, Devin Wahl, um estudante de graduação na Universidade de Sydney, disse ao Canberra Times  em entrevista que a credita que as pessoas devessem minimizar o consumo de carne vermelha com base em sua pesquisa (?), mas não houve um único mísero pedaço de carne de qualquer tipo (nas rações) em seu estudo.
Questionando a Ciência
Mesmo se considerássemos as descobertas deste estudo pelo valor aparente e aceitássemos que a redução substancial das proteínas e o aumento modesto do carboidrato (de alto para ainda maior) podem de fato trazer benefícios sutis para o cérebro, ainda precisaríamos nos perguntar:
1.   Os ratos e os seres humanos supostamente comem as mesmas quantidades e tipos de proteínas e carboidratos? O trato digestivo de um rato é marcadamente diferente do trato digestivo humano, porque ele é projetado para lidar com uma dieta diferente - que é muito maior em alimentos vegetais fibrosos.
2.   A redução de proteína para 5 % das calorias diárias é segura para os seres humanos? De acordo com esta calculadora de proteína do USDA, uma mulher de 65 anos, pesando 61 quilos, cujo nível de atividade é baixo, deve consumir 49 gramas de proteína por dia, o que representa 10% de seu total de calorias diárias. Esta estimativa é baseada na RDA (Recommended Daily Allowance ou  Ingestão Diária Recomendada (IDR) em português) internacional atual para proteína, que é fixada em 0,8 grama por quilograma de peso corporal por dia - mas os cientistas estão questionando se esse nível de proteína não poderia ser muito baixo para pessoas idosas. De fato, um crescente corpo de pesquisa sugere que pessoas idosas saudáveis ​​podem precisar ingerir entre 1,0 e 1,2 gramas de proteína por quilograma de peso corporal por dia (12,5 a 15% das calorias diárias) para manter a massa muscular e promover a saúde ideal, e pessoas com certos problemas de saúde ou maior atividade níveis podem precisar comer mais do que isso.
Os autores do estudo não abordam esses problemas potenciais em seu artigo.
Qual é a manchete real?
Investigar as complexidades dos resultados do estudo não vale o tempo ou a energia quando a metodologia é tão falha ("garbage in, garbage out", como diz o ditado), mas aqui está como os autores resumem suas descobertas cognitivas e comportamentais:
"Em nosso estudo, a dieta com restrição de calorias e as dietas com LPHC [Low-Protein-High-Carbohydrate] foram associadas a melhorias modestas nos resultados comportamentais e cognitivos, embora os resultados tenham sido limitados principalmente às mulheres e inconsistentes".
Cada ração neste estudo foi confeccionada a partir de junk food. Na melhor das hipóteses, este estudo só pode nos informar sobre os riscos e benefícios - para ratos - de comer junk food contendo variadas porcentagens de proteína e carboidrato. Não temos ideia do que os resultados significam para as pessoas que comem alimentos minimamente processados e apropriados para as espécies. 
Um título mais preciso pode ser algo assim:
Se sua dieta consistir inteiramente de pellets ultraprocessados ​​feitos de extrato de proteína láctea, amido refinado, açúcar e óleo de soja, e você for um camundongo, seu cérebro pode estar um pouco melhor se você mudar para pellets misteriosos muito mais baixos em extrato proteíco lácteo e um pouco mais em amidos refinados e / ou açúcar. Não vamos dizer exatamente quanto de açúcar, amido ou amido dextrinizado devem compor os seus pellets, mas não achamos que você deva se preocupar com esses detalhes. Em vez disso, gostaríamos que você simplesmente acreditasse que mais carboidrato é sempre bom (independentemente do grau de refinamento), proteína (pela qual esperamos que você pressuponha que falamos de carne) é ruim, e que realizamos um estudo sério relevante para a nutrição humana que é digno de sua consideração.
A triste verdade é que este estudo simplesmente não foi concebido de uma forma que possa informa-lhe qualquer coisa sobre dietas humanas, consumo de carne, ou quanto de proteína ou de carboidrato você devesse comer.


2 comentários:

  1. Realmente... acima de tudo é lamentável que se continue a utilizar ensaios clínicos com animais (mesmo ensaios com bem melhor formulação que este) como ensaios referência, ou para extrair paralelismos com a dieta humana. Como refere e bem, o tracto digestivo e todo o demais metabolismo são substancialmente diferentes entre ratos e humanos. Mesmo que fosse dado aos ratos uma dieta baseada em "alimentos de verdade", os efeitos desses alimentos nunca seriam realmente comparáveis... a menos que "você seja um camundongo" :)

    Faz lembrar o "estudo" que deu azo aos mitos actuais sobre colesterol, em que deram colesterol animal a coelhos (e a outros animais herbívoros) e usaram os resultados para fundamentar todas as seguintes "falsas evidências" :)

    Eduardo Ferreira - https://nutrirevolucao.pt

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  2. Grato Eduardo por sua participação. Esse estudo que falas sobre dar colesterol a herbívoros, como o coelho, esteve presente em um importante livro de fisiologia, da década de 80, o Guyton, que esteve participando da formação de centenas de profissionais de saúde. Abraço

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