Nos próximos dias seremos massivamente alvejados pela mídia com a publicação de um ambicioso programa de diretrizes alimentares que terá como fulcro a equação saúde humana/saúde do planeta. O programa chamado de EAT-Lancet (Alimento - Planeta - Saúde) se propõe a unir estratégias alimentares que possam oferecer saúde para a população de todo o planeta e ao mesmo tempo promover uma sustentabilidade para a própria Terra. No campo alimentar no entanto não há grandes novidades em relação a diretrizes sabidamente insuficientes, baseadas em conhecimentos equivocados e preconceituosos dos anos 50, que trouxeram magníficos lucros para toda a cadeia produtiva agrícola, e para as indústrias de medicamentos, ao mesmo tempo que a saúde geral enfrentou um profundo desequilíbrio, com a ampla disseminação de quadros metabólicos e degenerativos. Como uma grande parte da sustentação desse programa vem das próprias empresas que mais lucraram nas últimas décadas não é de estranhar que suas diretrizes tenham deixado de lado todo o conhecimento que pudesse deixá-las em situação de possível prejuízo. Vejamos a seguir uma excelente análise dessa proposta retrógrada, parcial e preconceituosa.
As verdades inconvenientes por trás da dieta da
"saúde planetária"
Artigo de Erica Hauver - publicado em 06/02/2019
Podemos pelo que comemos modificar
o nosso futuro não apenas para aprimorar a saúde, mas também para um tornar o planeta
melhor? Essa é a questão abordada pela Comissão EAT-Lancet sobre Dietas
Saudáveis para Sistemas Alimentares Sustentáveis (PDF), que
lançou suas recomendações dietéticas globais de saúde planetária nas Nações
Unidas.
O objetivo dos 19 comissários,
selecionados de uma série de departamentos ambientais, agrícolas e de saúde
pública, era estabelecer um consenso científico sobre como fornecer uma dieta
saudável a uma população global em crescimento, salvaguardando o meio ambiente.
A importância, complexidade e
escala desta tarefa não podem ser subestimadas. Mais de 800 milhões de
pessoas no planeta não têm o suficiente para comer. Enquanto isso, as
dietas de muitos dos outros sete bilhões de cidadãos estão originando uma
pandemia de doenças "ocidentais". As doenças crônicas causadas pela
alimentação têm aumentado em taxas alarmantes por várias décadas.
Hoje, 60% dos americanos têm uma condição crônica
de saúde; 40 por cento têm duas ou mais. Mais da metade dos
americanos tomam um remédio prescrito; a pessoa média utiliza quatro. A
América (EUA) é o país mais doente do mundo desenvolvido. Muitas nações
estão seguindo as mesmas linhas de tendência. Por quê? Por causa
da comida que comemos.
Nossa dieta é também o maior contribuinte
para a degradação ambiental global. A produção, processamento, transporte,
armazenamento e desperdício de nossos alimentos representam um quarto da
contribuição humana para a mudança climática. Eles também causam perda de
biodiversidade e solo e aumentam a poluição do ar e da água.
Nossa dieta
é o denominador comum entre a saúde humana e ambiental.
Então, a
Comissão EAT-Lancet alcançou seu objetivo de elaborar uma dieta que possa reduzir
as tendências de doenças crônicas e os danos ambientais, ao mesmo tempo em que
nos permite alimentar bilhões de pessoas a mais até 2050?
Infelizmente, a resposta
curta é não. A dieta para a
saúde planetária da comissão é insuficiente, por três razões. Em primeiro
lugar, baseia-se em uma ciência nutricional fraca e ultrapassada. Em
segundo lugar, a comissão não conseguiu alcançar um consenso científico
internacional para suas metas alimentares, apesar de suas alegações de ter
feito isso. Terceiro, sofreu de liderança tendenciosa, ou pelo menos não
representativa.
Empresas que estão dando suporte a comissão EAT-LANCET, provando que "business is always business":
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A Ciência Nutricional em Convulsão
Em 1980, o governo dos EUA
desencadeou uma mudança radical na dieta dos americanos transformando uma teoria sobre gordura dietética e
doenças cardíacas em uma política de
nutrição com baixo teor de gordura e alto teor de carboidratos para
todos. Mudanças modestas na dieta dos EUA já estavam sendo impulsionadas
pelo aumento do consumo de "alimentos básicos" (milho, trigo, arroz)
baratos e ricos em amido, produtos da industrialização agrícola. A adoção
do modelo low-fat/high-carb como política nutricional nacional acelerou
drasticamente essa tendência. Os americanos obedientemente cortaram seu
consumo de gorduras naturais encontradas em carnes vermelhas, manteiga, leite
integral, ovos e outros alimentos integrais e os substituíram por carnes
magras, óleos refinados e ainda mais carboidratos.
Outros países seguiram o
exemplo, importando a política dietética dos EUA e um suprimento alimentar
"mais saudável", com baixo teor de gordura, baixo teor de nutrientes,
alto teor de açúcar e alto teor de carboidratos. A qualidade da evidência
que sustenta uma mudança tão radical na dieta dos Estados Unidos foi
questionada na época, inclusive pelo chefe das Academias Nacionais de Ciência
pedindo cautela, dado o potencial para trágicas consequências não intencionais. Mas
os formuladores de políticas estavam ansiosos para "fazer algo" sobre
o surgimento de doenças cardiovasculares e não viram uma desvantagem. Os
níveis de obesidade e diabetes, no entanto, aumentaram acentuadamente.
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Após a adoção de diretrizes oficiais de nutrição para a saúde a obesidade nos EEUU disparou |
Culpar a "fraqueza"
dos mais afetados (ou seja: culpar a vítima
e não a orientação) tornou-se a norma nos círculos de saúde pública: a suposição é
que as pessoas simplesmente não estão seguindo o bom conselho que lhes foi
dado. Na verdade, nós tivemos uma política pífia, baseada em
ciência pífia. Investigações recentes revelaram a história de estudos de
nutrição que foram ignorados, mal concebidos ou executados, sujeitos a
influências ou mesmo manipulados para alcançar o resultado desejado. (Um estudo de vários países que sustentou a
maior parte da política nutricional durante décadas apontou para a vantagem de
saúde da dieta das pessoas em Creta - mas os dados dos alimentos foram
coletados durante o período de jejum da Quaresma Ortodoxa). O
resultado foi a formulação de políticas sem evidências, que tem sido a marca da
política de nutrição dos EUA por quase meio século.
Um coro crescente de cientistas
e médicos proeminentes está exigindo uma revisão baseada em evidências da
política de nutrição da América. Avanços na epigenética, pesquisa do
microbioma intestinal, neurociência, endocrinologia, psiquiatria e outros
campos lançaram nova luz sobre o poderoso papel que nossas dietas têm no
desenvolvimento de doenças crônicas específicas. A dieta pobre em gorduras
e alta em carboidratos está implicada em muitas das principais doenças
metabólicas e inflamatórias do nosso tempo: obesidade; doença
cardiovascular; diabetes; Doença de Alzheimer; doença hepática
gordurosa; condições autoimunes; alguns tipos de câncer; depressão; e
déficit de atenção e hiperatividade - TDAH.
Mas as forças que atuam para
manter o status quo são muito poderosas. Isto é verdade para qualquer
paradigma entrincheirado com muitos interesses, neste caso a indústria de
alimentos e bebidas, a indústria farmacêutica, ONGs influentes e muitos
bolsistas da academia.
As mesmas táticas usadas
para confundir o público e os formuladores de políticas a fim de impedir o
progresso nas regulamentações sobre o tabagismo e as ações sobre a mudança
climática estão sendo executadas hoje na política de nutrição.
As mesmas táticas usadas para confundir o público e os formuladores de políticas públicas a fim de impedir o progresso nas regulamentações sobre o tabagismo e as ações sobre as mudanças climáticas estão sendo executadas na política de nutrição.
Mas
a pressão política está crescendo para desafiar essa arraigada sabedoria
nutricional. Seguindo uma solicitação do Congresso em 2015, o órgão
científico sênior da América, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e
Medicina , divulgou dois relatórios (encontrados aqui e aqui ) levantando questões desafiadoras sobre
o rigor científico que sustenta as Diretrizes Dietéticas para os Americanos (DGAs)
do governo. Uma investigação
de 2015 do BMJ (ex-British
Medical Journal) foi mais longe, revelando que o Comitê da DGA não havia
analisado ou decidiu ignorar "muita literatura científica relevante em
suas revisões de tópicos cruciais e, portanto, corre o risco de dar uma imagem
enganosa. As omissões parecem sugerir uma relutância do comitê por trás do
relatório em considerar qualquer evidência que contradiga os últimos 35 anos de
orientação nutricional ".
Reivindicações
de consenso científico são enganosas
O relatório da
Comissão EAT Lancet afirma que seus alvos de macronutrientes
("grupo de alimentos") foram " alcançados por consenso
científico internacional, com base na mais recente ciência disponível, e estão
limitados no tempo". A comissão chega a comparar o consenso
científico internacional. por trás de seus alvos dietéticos ao consenso
científico que sustenta as metas climáticas estabelecidas pelo Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre
Mudanças Climáticas (IPCC).
A autoridade, o mandato, o
processo, o cronograma, os recursos e a adesão da Comissão EAT-Lancet não eram
de forma alguma comparáveis aos do IPCC. Implicar comparabilidade é
enganoso e antiético. Essa falsa impressão pode levar os consumidores e os
formuladores de políticas a agir com base na crença de que as recomendações do
EAT-Lancet estão fundamentadas em um consenso baseado em evidências. Não o
é, pelo menos não em relação aos seus alvos nutricionais.
A ciência da nutrição está
passando por um período de esclarecimento científico semelhante ao que ocorreu
na ciência do clima há 30 anos. O velho paradigma está desaparecendo e
ainda não está claro o que irá substituí-lo. Em outras palavras, um
"consenso científico" sobre o que constitui uma dieta saudável
simplesmente não é possível no momento.
O único consenso real alcançado
pelos 19 membros e 16 co-autores do relatório EAT-Lancet está entre eles mesmos.
Preconceito,
transparência e ciência incerta
Nenhum pesquisador contemporâneo
está mais fortemente associado ao paradigma original de nutrição com baixo teor
de gordura e carboidratos do que o Dr. Walter Willett, epidemiologista da
Harvard School of Public Health. Willett foi selecionado como principal
autor da comissão. Se esta decisão foi uma coincidência, foi conveniente. A
seleção de Willett e várias decisões que se seguiram levantam questões sobre se
a Comissão EAT, seus financiadores ou membros individuais estavam usando
"saúde pública e planetária" como travestismos para várias outras
agendas de interesses.
Quando foi introduzido em todo o
país em 1980, a parcela low fat do modelo
de dieta de baixo teor de gordura / alto teor de carboidratos tinha
três pilares: limites sobre o colesterol alimentar; a gordura saturada; e
a gordura total. Esses pilares foram baseados em uma hipótese não comprovada
sobre as causas das doenças cardíacas. Décadas depois que o suprimento de
alimentos dos Estados Unidos foi reformulado para reduzir o consumo desses
"maus atores", o governo dos EUA retirou os limites de colesterol
total e colesterol da dieta depois de não encontrar evidências para apoiá-los. As
restrições rígidas sobre a gordura saturada permanecem como política
oficial da dieta dos EUA, embora este último pilar esteja pendulando.
Como
principal autor e cientista da Comissão EAT-Lancet, Willett tinha a responsabilidade
de divulgar no relatório que suas interpretações não estão de acordo com outros
especialistas na área.
Bilhões
de dólares foram gastos em pesquisa da gordura saturada, em grande parte pelo
NIH (Instituto Nacional de Saúde), gerando décadas de dados de testes de
controle randomizados envolvendo quase 75.000 pessoas. Estes estudos não
mostram benefícios da redução de gorduras saturadas na redução de eventos
de doença cardíaca coronária ou doença cardiovascular total, incluindo acidente
vascular cerebral. A investigação do BMJ de 2015 revelou que a Comissão
Dietética dos EUA havia ignorado, ou nunca revisto, este grande corpo de
pesquisa sobre a gordura saturada.
A Comissão EAT-Lancet ainda faz
com que os limites de gordura saturada sejam fundamentais para o design da
dieta, citando a política do governo dos EUA como justificativa para os dramáticos
limites impostos a alimentos como a carne vermelha, os ovos e os laticínios em
sua "dieta saudável" - a dieta ideal para a saúde antes de quaisquer
modificações pelas considerações ambientais.
No entanto, Willett tornou-se
uma voz minoritária sobre os perigos da gordura saturada nos principais
círculos de nutrição. Em uma reunião em junho dos principais
cientistas de nutrição do mundo, organizada pela BMJ na
Suíça, os pesquisadores concordaram que a preocupação com a gordura saturada e
as doenças cardíacas era "passado". O editor do BMJ pediu uma mea culpa pública pelos
cientistas da nutrição. Willett estava presente. Ele pode não ter
concordado com seus colegas, mas como principal autor e cientista da Comissão
EAT-Lancet, ele tinha a responsabilidade de divulgar no relatório da EAT-Lancet
que suas interpretações da ciência sobre a gordura saturada não estão alinhadas
com outros especialistas. em seu campo; e assegurar que a Comissão
EAT-Lancet tivesse representação de pontos de vista alternativos.
As opiniões de longa data de
Willett sobre a gordura saturada tornaram-no uma das principais vozes sobre os
perigos para a saúde da carne vermelha. Isso foi possivelmente um fator em
sua nomeação como principal autor do relatório? No lançamento do
EAT-Lancet em Oslo, ele comparou os impactos sobre a saúde da ingestão de carne
vermelha ao consumo de cigarros. Dada a fraca base de evidências contra a
carne vermelha não processada – que de fato, ela tem vantagens nutricionais
sobre muitos outros alimentos - a comparação
sugere que a ideologia está superando sua objetividade científica.
A difamação de gorduras
saturadas, carne e laticínios são apenas três elementos no plano da comissão
que estão sendo muito contestados na ciência da saúde e nutrição. Outros
incluem as recomendações da comissão sobre as proporções "saudáveis"
de grãos integrais, carboidratos e açúcar na dieta. Suas recomendações
contradizem estudos nutricionais recentes de alta qualidade sobre obesidade e
diabetes, incluindo o trabalho do
colega de Willett na Escola de Saúde Pública de Harvard, David Ludwig . Dado
que 30% da população global e a maioria das pessoas em muitos países ocidentais
lutam contra a síndrome metabólica ( aumento da pressão arterial, glicose
elevada no sangue, excesso de gordura corporal ao redor da cintura e níveis
anormais de colesterol ou triglicérides que aumentam o risco de doença
cardíaca, derrame cerebral e diabetes), a adoção das propostas da Comissão
EAT-Lancet, seja por meio de mudanças políticas ou mudanças no comportamento do
consumidor, corre o
risco de repetir e possivelmente exacerbar os erros que cometemos há 40 anos.
Os perigos do
viés das boas intenções do moralista
Na saúde pública, há um termo para
"preconceitos que levam à distorção da informação a serviço do que pode
ser considerado um fim justo". Isso é chamado de “white hat bias” (algo
como: preconceito do moralista bem-intencionado). Esta é a armadilha na
qual o relatório EAT-Lancet se enquadra.
A nutrição é uma arena em que
esse viés pode ter consequências profundas. Não seria a primeira vez. Boas intenções semelhantes, quase meio século
atrás, inadvertidamente fizeram da dieta a principal causa de nossas crises
globais de saúde e assistência médica.
A escala de nossa crise de
saúde está de acordo com os impactos climáticos projetados do futuro, incluindo
mortes prematuras, sofrimento humano em grande escala e impacto econômico.
A
escala de nossa crise de saúde está de acordo com os impactos climáticos
projetados do futuro, incluindo mortes prematuras, sofrimento humano em grande
escala e impacto econômico.
Por exemplo, doenças crônicas
relacionadas à dieta custam à economia dos EUA cerca de US $ 3 trilhões por ano
- ou seja, 16% do PIB dos EUA. Em comparação, a Quarta Avaliação Nacional do Clima dos EUA estima o impacto econômico da
mudança climática na economia dos EUA em torno de 10% do PIB até 2100.
Nada disso diminui a necessidade
urgente de uma ação agressiva para conter a mudança climática, especialmente através
de políticas como o imposto sobre o carbono e, sem dúvida, por muitas das recomendações
sobre produção e desperdício de alimentos no relatório EAT-Lancet.
Mas a tentativa de produzir um
plano dietético cientificamente credível, alinhando a ciência da nutrição com
os objetivos ambientais, estava condenada ao fracasso desde o início. A
ciência sobre a mudança climática está essencialmente resolvida. A ciência
da nutrição está em transformação. Acelerar a aproximação de ambas, ao
final, não servirá a nenhuma das duas.
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