Mais uma análise crítica responsável de Georgia Ede sobre pesquisas que vem a público como manchetes ardilosas, que nem de longe poderiam ser recebidas pela população em geral como recomendações sérias quanto a alimentação e sua implicação à saúde humana. A manchete chama a atenção por se colocar no sentido contrário de um manancial de pesquisas que dizem justamente o contrário, num tema extremamente sensível como a prevenção de enfermidades cognitivas da terceira idade. Claro que muitos não levam a sério simplesmente por que seria uma pesquisa com ratos, mas é sempre melhor entender de forma judiciosa porque esse tipo de pretensa ciência é muito mais um lixo travestido de pesquisa nutricional.
A verdade sobre dietas com
baixo teor de proteína, ricas em carboidrato e o envelhecimento cerebral
Você deve evitar a carne e consumir os bolinhos?
Publicado em 04 de dezembro de 2018
(Autora: Georgia Ede)
Um novo estudo realizado na Universidade de Sydney e publicado na
revista Cell Reports é inspirador para manchetes por todo o
mundo, como esta:
" Dieta pobre em proteínas e rica em
carboidratos pode ajudar a afastar a demência" (No jornal The Guardian:)
Low-protein, high-carb diet may help ward off dementia
No estudo, os cientistas compararam dietas contendo diferentes
quantidades de proteínas e carboidratos com uma dieta de baixa
caloria. Seus resultados sugerem que dietas com baixo teor de proteína e
maior teor de carboidratos podem, em alguns casos,
fornecer benefícios cerebrais sutis semelhantes
aos benefícios observados com a restrição calórica. Os pesquisadores
concluíram que “uma dieta com muito pouca proteína e alto teor de carboidratos
pode ser uma intervenção nutricional viável para retardar o envelhecimento cerebral ”.
Isso, apesar de um crescente corpo de evidências clínicas
sugerindo que dietas com pouco carboidrato podem ser úteis para pessoas com
problemas cerebrais, incluindo:
Então o que está acontecendo aqui?
Se você acredita nos benefícios para a saúde de
dietas ricas em carboidratos, você pode ficar de olho nas manchetes parecerem
ser merecedoras de confiança e se sentir seguro de que o estudo confirma suas
crenças. Você poderia apontar para o fato de que este estudo representa um
esforço colaborativo de cientistas internacionais de lugares de prestígio como
a Universidade de Sydney, o National
Institutes of Health e a Universidade de Harvard. Você pode até mesmo
passar o tempo lendo o artigo de 38 páginas, admirando o quão sofisticada e
impressionante a ciência parece.
Se você acredita nos benefícios para a saúde de dietas com pouco
carboidrato, pode decidir descartar este estudo simplesmente porque é um estudo
com camundongos, ou pode gastar um tempo precioso analisando os resultados e
julgá-los como fracos ou inconclusivos.
No entanto, a melhor e mais eficiente maneira de avaliar este
(ou qualquer outro) estudo de nutrição em roedores é
ir direto para a seção de métodos e observar a ração. [Cuidado: o que você descobrirá em quase todos os
casos pode chocar, enfurecer, confundir ou entreter você, dependendo de
sua estrutura de personalidade.]
Mostre-me a ração
Inquestionavelmente, a única coisa mais importante que
precisamos saber sobre qualquer estudo de dieta é a composição da ração - mas
em nenhum lugar dentro deste relatório encontramos uma descrição de qualquer
uma das cinco rações que esses animais foram alimentados. Tudo o que nos é
dado é essa referência vaga à comida sobre a qual as rações foram baseadas:
“As rações foram adquiridas da Specialty Feeds (Perth, Austrália
Ocidental) e formuladas para ter o mesmo conteúdo energético total
(isocalórico), mas com diferentes proporções de proteína para carboidrato e com
gordura fixa. Cada dieta foi baseada
na [ênfase minha] dieta de roedores AIN-93G (Specialty Feeds)
e formulada para conter todas as vitaminas, minerais e aminoácidos essenciais
para o crescimento em camundongos. O principal componente proteico da
dieta era a caseína, o principal componente de carboidratos era o amido, e o
principal componente de gordura era o óleo de soja”.
Para encontrar os
ingredientes da fórmula base AIN-93G nós (não devemos) ter que fazer uma
pesquisa no Google. [Caça à ração
tem sido um dos meus passatempos favoritos, estou acostumada com este jogo.]
Observe que esse “alimento” - feito de caseína (proteína isolada
do leite), amido, açúcar e óleo de canola - é essencialmente o equivalente a um
cone de sorvete altamente processado, mas no formato de pastilhas de ração para
camundongos.
Pobres ratos...
Camundongos selvagens são “onívoros oportunistas” adaptados para
comer uma grande variedade de alimentos vegetais e animais encontrados no ambiente natural -
sementes, frutas, insetos, nozes, etc. As dietas deste estudo não continham
nozes, sementes, grãos integrais, insetos, folhas ou bagas.
Não existe um único
alimento saudável e adequado para um rato nesta fórmula. Qualquer
mudança que os pesquisadores possam ter feito nessa dieta teria sido uma
melhoria.
Todos os carboidratos não são criados iguais
Existem três tipos de carboidratos na ração AIN93G:
63 por cento é o amido
de trigo, um carboidrato complexo (longas cadeias de moléculas
de glicose) feito pela remoção de proteínas e fibras da farinha de trigo.
21% é um
amido "dextrinizado", um carboidrato refinado
(tratado com calor e ácido para quebrar suas longas cadeias de moléculas de
glicose em pedaços menores, mais rapidamente digeríveis).
16% é sacarose,
também conhecido como açúcar de mesa (50% de frutose, 50% de glicose).
Dado tudo o que sabemos sobre o açúcar e a doença, seria de
esperar que os cientistas interessados na saúde do cérebro eliminassem, pelo
menos, o açúcar e outros hidratos de carbono refinados de suas rações
experimentais. Infelizmente, não nos dizem quais tipos de carboidratos
estão presentes nos pellets experimentais, apenas que "o principal
componente de carboidratos era o amido".
Os autores escrevem que suas rações foram “baseados em” AIN93G,
que contém óleo de canola, enquanto as dietas que eles usaram no estudo
continham óleo de soja. Não temos como saber quais outras diferenças
importantes podem ter ocorrido entre o AIN93G e as dietas reais usadas no estudo,
porque as dietas experimentais não foram descritas.
Como uma seção de métodos como essa passa pela revisão
científica por pares? Os cientistas que realizam experimentos dietéticos
não deveriam divulgar os ingredientes das dietas que estão estudando?
O experimento
Com essas sérias preocupações à parte, vejamos o que os
pesquisadores estavam tentando fazer. Eles explicam que estudos em animais
sugerem que a restrição calórica pode ter efeitos positivos sobre a cognição e
o envelhecimento cerebral, mas reconhecem que a restrição calórica a longo
prazo é difícil de ser sustentada pelos seres humanos. Então, eles se
propuseram a explorar se a redução de proteínas e o aumento de carboidratos
poderiam ter efeitos positivos similares no cérebro, sem a necessidade de restrição
calórica.
Eles criaram uma ração
contendo 19% de proteína, 63,4% de carboidratos e 17,8% de gordura para
representar uma dieta padrão de “controle” (listada na parte inferior da tabela
abaixo). Eles também alimentaram alguns dos camundongos com uma dieta 20
por cento mais baixa em calorias, restringindo-os a ingerir uma quantidade
menor do que a ração padrão (com o rótulo "CR" para "restrição
de calorias" na linha superior da tabela abaixo). Eles então
projetaram três versões de baixo teor de proteína e alto teor de carboidrato da
ração padrão substituindo algumas das proteínas por carboidrato.
Observe que a
variação de proteína era grande - variando entre aproximadamente 5% e 19% -
então a dieta de baixa proteína continha quase quatro vezes menos proteína que
a dieta rica em proteínas. Todas as cinco dietas eram muito altas em
carboidratos, e a variação em carboidratos era relativamente pequena, variando
de cerca de 63% a 77%, significando que a dieta “rica em carboidratos” continha
apenas cerca de 1,2 vezes mais carboidratos do que a dieta padrão. Dietas
de baixo carboidrato de qualquer tipo não foram incluídas neste experimento.
As versões com
menos proteínas e carboidratos da dieta substituíram as calorias da caseína por
calorias de carboidratos - mas que tipo de carboidrato? Sabemos que o
AIN93G continha três tipos de carboidratos, cada qual refinado em uma diferente
extensão, mas não sabemos que tipo(s) de carboidrato(s) estavam presentes nas rações
experimentais. Isso é importante porque os
carboidratos refinados podem colocar em risco a saúde algo que não
ocorre com alimentos integrais com fontes complexas de carboidratos. Se as
rações com maior quantidade de carboidratos também contivessem carboidratos
menos refinados, isso poderia ter um impacto sobre os efeitos na saúde pela
dieta, mas os autores não abordam a questão da qualidade dos carboidratos de
qualquer maneira.
Leite é diferente
Mas nem tudo é
somente sobre carboidratos. A qualidade das proteínas também é importante.
A única fonte de
proteína na ração de laboratório era a caseína - uma proteína isolada do leite
de vaca que os camundongos selvagens nunca encontrariam naturalmente enquanto
se movem apressadamente atrás de suas demandas diárias. Existe até pesquisa sugerindo que
alguns ratos podem ter uma aversão natural à caseína:
"Quando a
caseína intacta foi oferecida aos roedores, houve alguns relatos de que os
indivíduos se recusaram a comê-la, mesmo na medida em que sofreriam de perda de
peso e morte".
É lamentável que
tantas rações de laboratório usem extrato de caseína como fonte de proteína,
porque a proteína
láctea é marcadamente diferente da proteína encontrada na carne de
animais (mamíferos, aves, peixes, insetos, etc.) e tem efeitos hormonais únicos
no consumidor, especialmente nos
níveis de insulina.
"Estudos de
intervenção fornecem evidências de que as proteínas lácteas têm efeitos mais
potentes sobre a secreção de insulina e incretinas em comparação com outras
proteínas animais comumente consumidas."
Altos níveis de
insulina e resistência à insulina foram estabelecidos como principais forças
motrizes por trás da maioria dos casos de doença
de Alzheimer e muitas outras doenças crônicas que associamos ao
envelhecimento. Portanto, pode ser sensato limitar a
ingestão de proteína láctea, mas e quanto aos outros tipos de proteína? Os
resultados teriam sido diferentes se uma fonte de proteína não láctea tivesse
sido usada?
O principal autor
do estudo em pauta, Devin Wahl, um
estudante de graduação na Universidade de Sydney, disse ao Canberra Times em entrevista que a credita que as pessoas
devessem minimizar o consumo de carne vermelha com base em sua pesquisa (?), mas não houve um único mísero pedaço
de carne de qualquer tipo (nas rações) em seu estudo.
Questionando a Ciência
Mesmo se
considerássemos as descobertas deste estudo pelo valor aparente e aceitássemos
que a redução substancial das proteínas e o aumento modesto do carboidrato (de
alto para ainda maior) podem de fato trazer benefícios sutis para o cérebro,
ainda precisaríamos nos perguntar:
1. Os ratos e os seres
humanos supostamente comem as mesmas quantidades e tipos de proteínas e
carboidratos? O trato digestivo de um rato é marcadamente diferente do trato
digestivo humano, porque ele é projetado para lidar com uma dieta diferente -
que é muito maior em alimentos vegetais fibrosos.
2. A redução de
proteína para 5 % das calorias diárias é segura para os seres
humanos? De acordo com esta calculadora
de proteína do USDA, uma mulher de 65 anos, pesando 61 quilos, cujo
nível de atividade é baixo, deve consumir 49 gramas de proteína por dia, o que
representa 10% de seu total de calorias diárias. Esta estimativa é baseada
na RDA (Recommended Daily Allowance ou Ingestão
Diária Recomendada (IDR) em português) internacional atual para
proteína, que é fixada em 0,8 grama por quilograma de peso corporal por dia -
mas os cientistas estão questionando se esse nível de proteína
não poderia ser muito baixo para pessoas idosas. De fato, um
crescente corpo de pesquisa sugere que pessoas idosas
saudáveis podem precisar ingerir entre 1,0 e 1,2 gramas de proteína por
quilograma de peso corporal por dia (12,5 a 15% das calorias diárias) para
manter a massa muscular e promover a saúde ideal, e pessoas com certos
problemas de saúde ou maior atividade níveis podem precisar comer mais do que
isso.
Os autores do
estudo não abordam esses problemas potenciais em seu artigo.
Qual é a manchete real?
Investigar as
complexidades dos resultados do estudo não vale o tempo ou a energia quando a
metodologia é tão falha ("garbage
in, garbage out", como diz o ditado), mas aqui está como os autores
resumem suas descobertas cognitivas e comportamentais:
"Em nosso
estudo, a dieta com restrição de calorias e as dietas com LPHC
[Low-Protein-High-Carbohydrate] foram associadas a melhorias modestas nos
resultados comportamentais e cognitivos, embora os resultados tenham sido
limitados principalmente às mulheres e inconsistentes".
Cada ração neste
estudo foi confeccionada a partir de junk
food. Na melhor das hipóteses, este estudo só pode nos informar sobre
os riscos e benefícios - para ratos - de comer junk food contendo variadas porcentagens de proteína e
carboidrato. Não temos ideia do que os resultados significam para as
pessoas que comem alimentos minimamente processados e apropriados para as
espécies.
Um título mais
preciso pode ser algo assim:
Se sua dieta
consistir inteiramente de pellets ultraprocessados feitos de extrato de
proteína láctea, amido refinado, açúcar e óleo de soja, e você for um
camundongo, seu cérebro pode estar um pouco melhor se você mudar para pellets
misteriosos muito mais baixos em extrato proteíco lácteo e um pouco mais em
amidos refinados e / ou açúcar. Não vamos dizer exatamente quanto de açúcar,
amido ou amido dextrinizado devem compor os seus pellets, mas não achamos que
você deva se preocupar com esses detalhes. Em vez disso, gostaríamos que
você simplesmente acreditasse que mais carboidrato é sempre bom
(independentemente do grau de refinamento), proteína (pela qual esperamos que
você pressuponha que falamos de carne) é ruim, e que realizamos um estudo sério
relevante para a nutrição humana que é digno de sua consideração.
A triste verdade é
que este estudo simplesmente não foi concebido de uma forma que possa informa-lhe
qualquer coisa sobre dietas humanas, consumo de carne, ou quanto de proteína ou
de carboidrato você devesse comer.